a cã

quatro meses atrás, a essa hora, eu estava indo na veterinária pela primeira vez na noite.

mas não é isso que importa. o que importa. o que importa? dia desses, eu tive um momento tão óbvio na análise que só restou uma risada compartilhada entre mim e a analista. falei que antes de ir ao consultório, tinha tirado um cochilo em casa e sonhado com a cã. falei que não sabia o motivo. falei que no dia anterior, tinha sentido muita saudade dela. falei que naquela manhã, tinha lido a morte da baleia para os meus alunos. foi aí que fiz "ah!", e aí as risadas todas. quanta obviedade. a morte da baleia. o sonho. você, criaturinha. 

você fez a viagem até nossa casa em uma caixa de sapato. presente de um amigo do meu pai, da época da faculdade, da ninhada dos seus dois cachorros. fomos buscar você na casa dele. coisa minúscula. menor do que uma chinela tamanho 37. seu nome ia ser lilith, mas um final de semana antes eu estava no cinema com meus amigos e passou o trailer de um filme de terror sobre uma criança possuída por lilith. eu sempre fui muito medrosa e atenta aos presságios. melhor algo mais banal, comum, corriqueiro: lola. um nome muito 2010. era 2010. isso importa? você na caixinha de sapato, no meu colo. você na imensa caixa em que o rapaz do crematório te colocou, catorze anos depois.

parece loucura se eu digo que quando fecho os olhos, consigo sentir na palma da mão a textura do seu pelo? contando do sonho que tive, lacrimejando. sentir nos braços o seu peso. não quero nunca acordar. perguntas: eu brinquei o suficiente? será? será que dei atenção suficiente? será que as coceiras e as cócegas foram suficientes? para você. para mim, não foram. para mim, podiam durar ainda muito, muito, muito tempo.

às vezes eu penso que daqui a quase quinze anos, vai chegar o dia em que vou pensar: agora eu vivi sem você o tempo equivalente de viver com você. o que é um pensamento cômico, já que eu tinha vivido quinze anos antes da sua chegada. eu já vivi o tempo equivalente sem você. só não lembro como ele era. 

dos quinze aos trinta anos, eu vivi uma rotina irrecuperável. a cã. ela. animalzinha. ver um bichinho dormindo e pensar em como ama esse bichinho que está dormindo. olhar para a porta e ela estar lá. chegar em casa e ter sua recepção. ver um bichinho envelhecer e continuar com carinha de bebê. mesmo cego. mesmo ficando sem dentes. dedicar amor a um bichinho. um bichinho dedicar amor a você. eu sempre falo como fico feliz que os animais brincam, você e eu, animais que brincam. como eu não vou morrer de saudade? eu vivia tão preocupada com o dia da sua morte. eu chorava só de imaginar, muito menos do que o que choro agora. agora. agora mesmo, enquanto escrevo isso, e choro, choro, choro, pensando que é impossível explicar-entender a não ser que você também tenha um bichinho. não que eu não acredite na empatia das pessoas que nunca tiveram um. é que você tem que saber o que é a pura presença física de um animal sem palavras. como a casa existe muito menos para você do que para ele. como a casa existe ao redor dele. o que ele precisa para viver, o que ele não pode alcançar, o que ele tem que fazer. imagine a presença. imagine a sua casa, a sua rotina, a sua vida. a comunicação por uma via que não a da nossa linguagem, mas uma outra. imagine tudo isso, e todos os anos disso, e então o fim disso. pronto. acabou. essa vida que você sempre soube que seria curta, acabou. 

a casa sem a cã. lembro de voltar da clínica veterinária, depois do seu corpinho ter sido recolhido, entrar no apartamento e ver sua caminha no chão da sala. a casa, a sua casa. as suas coisas. as suas coisas sem você e a sua casa sem você. meu deus do céu, como é possível você não estar aqui? 

um dia, chegando de madrugada em casa, a cachorrinha da vizinha latiu e eu parei com a chave na porta e o coração acelerado porque ouvi direitinho o seu latido e por um segundo bêbado e sonolento, fez todo sentido imaginar que era você latindo. nos primeiros dias após a sua morte, meu corpo em alerta na hora do seu passeio, um cutucão no cérebro repetindo que eu não estava fazendo algo que devia fazer. eu estou reclamando muito? ela morreu com quase quinze anos. o que mais eu poderia querer? cinco anos, pelo menos, ou três, ou dois, ou um dia a mais, talvez? um dia, uma semana a mais? só mais um pouquinho? você, tão pequenininha. só uma vezinha mais. 

não tem nada aqui além de saudade. penso: amá-la foi o maior privilégio de todos. seu corpinho encostado ao meu. as numerosas lambidas. os arranhões e os latidos. criaturinha maluca, voluntariosa, amável. minha criaturinha nesse mundo. e eu, a sua. 

os meus guris

quando comecei esse blog, escrevia como forma de fugir da escrita da dissertação.

parece uma loucura que eu tenha defendido a dissertação. caramba. quantas vezes ela apareceu aqui nas postagens como algo impossível de acabar, de escrever, de fazer? e agora está feita, defendida e lida por uma banca generosíssima que recomendou que eu procurasse algum lugar para publicá-la. daqui a poucos dias, começam as minhas aulas do doutorado e a angústia de um novo texto a ser escrito. por agora, estou escrevendo no blog como forma de fugir de algo muito mais complicado do que uma dissertação ou uma tese: o planejamento de uma aula.

não preciso, felizmente, entregar um plano de aula completo, todinho por escrito, para a escola. acho que isso me geraria um pânico tremendo. é meu primeiro ano sendo professora, a primeira vez que estou com as turmas desde o princípio. então toda semana preciso descobrir como vou passar o conteúdo e que conteúdo quero passar. toda semana, todo dia, toda hora estou descobrindo ou tentando descobrir a professora que eu sou, ou que quero me tornar. todos os dias me pergunto: sou a vergonha da profissão? estou fazendo isso do jeito certo? é para ser assim? sinto vontade de pedir licença aos outros professores, com mais tempo, para assistir suas aulas. as aulas que estão frescas na minha memória são as aulas da universidade. queria me lembrar das aulas da escola, das aulas de português da escola. o que dizia o fábio coelho? o que dizia a fábia? a ceiça? o que me diziam meus professores, como eles preenchiam aquele tempo? falatório sem fim? atividades? outras informações?

meu maior problema como professora é que eu adoro conversar com os alunos. parece engraçado anunciar isso como um problema. o que eu devo a eles? qual o equilíbrio? quero ouvi-los, quero que eles aprendam. o que eles vão aprender? escrevo no quadro: cantigas de escárnio, cantigas de maldizer. volto-me aos meus alunos, em todas as salas, seis vezes repetindo a mesma pergunta: qual que é o nome de um tipo de música que se faz para falar mal de alguém, um outro cantor, normalmente? e em todas as salas, depois de uns instantes de pensamento, alguém brada: ah! uma diss! e eu sorrio, pegando os trovadores por uma mão e o rappers por outra. sim, sim, balançando a cabeça, uma diss.

o que eles vão aprender? encho o quadro de informações que logo estarão esquecidas, alguns garotos puxam suas cadeiras para perto da minha mesa e copiam enquanto conversam comigo. ao final, um deles diz que é muito melhor copiar um quadro imenso enquanto se conversa com a professora, e fico imensamente alegre. ah, i., é muito melhor ser professora enquanto se conversa com os alunos. qual que é o nosso equilíbrio? ele existe? penso nas coisas que eu queria que eles fizessem: escrevessem mais, escrevessem melhor. lessem mais. o que eu estou fazendo para isso? estou fazendo o suficiente? falar dos livros, mostrá-los, ler passagens em aula: isso basta? pedir para que eles escrevam, ouvir os resmungos de preguiça e insatisfação, insistir. isso basta? 

conheço meus alunos há um mês e seis dias e sinto que já os amo profundamente. como é possível? criaturas falantes e esquisitas, barulhos quase o tempo todo, resmungos, revirar de olhos. os alunos que eu jamais seria amiga caso fosse também aluna moram no meu coração. os alunos que eu obviamente seria amiga caso fosse aluna, também. até mesmo os mais difíceis. até aquele que de cara eu não gostei, o primeiro que eu aprendi o nome, com seu semblante de profundo tédio, nenhuma vontade de fazer nada que eu pedia, nem mesmo de fingir fazer. diante dele, todas as vezes eu pensando que não podia demonstrar, que ele não podia saber do meu desgosto. eu tenho trinta anos, ele tem quinze, eu sou responsável por como ajo sobre meus sentimentos, ele ainda está aprendendo essas coisas todas. depois de uma breve bronca, dada até com alguma tentativa de humor, na última aula, ele me olha com um sorriso enorme, malandro, sorriso de lobo e diz: você não gosta de mim, professora, mas eu gosto de você. como não amá-lo de imediato, amar sua perspicácia, sua leitura de mundo, seu sorriso ao enunciar essa frase que por qualquer outra boca poderia sair com imensa angústia? 

na sala de aula, muitas vezes, me sento no meio deles, ocupo uma carteira. d. coloca um chocolate sobre minha perna e sai. depois eu pergunto: ué, é pra mim? e ele confirma. meu primeiro chocolate. l. e m., em dias diferentes, elogiam minhas roupas, falam que eu sou estilosa. l.s., umas semanas atrás, me dizendo que quando crescesse, queria ser que nem eu. por quê? por eu ser uma adulta com personalidade. lembro de ter quinze anos e morrer de medo de, aos trinta, não amar mais o álvares de azevedo. de olhar para os adultos como pessoas entediantes. ah, o descompasso do tempo. p., g. e k. discutem jujutsu kaisen enquanto copiam a matéria. não consigo parar de sorrir durante a conversa. eles sentam nas carteiras bem na minha frente. "vocês são muito ignorantes," p. diz, erguendo a palma da mão, "vocês não leram o mangá". essa frase me faz sorrir o dia inteiro. m. fala que mataria todo mundo da sala, menos eu. nervosamente, digo: muito obrigada, m., mas por favor, não mate ninguém, nunca. f. puxa uma cadeira para se sentar ao meu lado e conversar comigo e d. sobre o pequeno trecho do documentário d'o povo brasileiro que vimos. eles falam coisas sobre o mundo e eu escuto, fascinada. sentada do lado dos alunos da sala que sou conselheira, a. me pede conselhos amorosos. e. e g. me perguntam, outra sala, se eles são minha turma preferida, ou uma das melhores, uma das que eu mais gosto. 

se r. sentiu que eu não gostava dele, todos os outros sentem que eu gosto deles? será que eles sabem? será que eles sabem que meu coração é mole, manteiga, pudim, sorvete, algo doce e macio, coração de fruta, melancia, docinha, docinha? eles sabem disso e sabem que podem usar os dentes em mim, arrancar pedaço que eu vou encontrar um significado, um motivo, uma justificativa? ou ainda, sabendo disso, o pedaço jamais será partido, mas sim preservado? um mês e uma semana de aula são suficientes pra eu já pensar e sentir tudo isso? mas que raio de profissão é essa? 

ser professor é muito esquisito. os momentos ruins. a voz cansada. disputar o espaço da fala. colocar as mãos no rosto e perguntar, exasperada, se eles não conseguem fazer silêncio por um instante só. no meio de tudo isso, no meio do ruído sem fim, no meio do agito e da preguiça, da indisposição e do cansaço, olhar para eles e pensar com tanta certeza e tanto espanto: meu deus, eu quero o bem dessas pessoas. eu quero o bem dessas pessoas de um jeito inédito e novo. não é como querer o bem de seus amigos, das pessoas que você ama. é parecido, mas é diferente. imagine-se olhando para a cara de um bando de gente de quinze anos. você já teve quinze anos há muito tempo. o que será que esses adultos sentiam por você? esse senso de responsabilidade? eu deveria falar mais de acentuação e de vírgulas? ou deveria dar mais espaço para ouvi-los? mais ainda? eu quero tanto que eles falem. eu quero tanto que eles se sintam seguros. eu quero tanto que eles se sintam confiantes. olho para os meus alunos e me pergunto: será que vocês sabem? alguns, talvez, sim. outros, não. a maioria não deve saber isso, não exatamente. talvez apenas pressintam de alguma maneira. talvez de nenhuma: quando eu era aluna, o que pensava dos sentimentos dos meus professores por nós? talvez nada.

li a flor e a náusea um monte de vezes nas aulas. sento-me na capital do país. passar a mão sobre a forma insegura. tenho vontade de dizer aos meus alunos desse ano, como tinha vontade de dizer aos alunos do final do ano passado: eu ainda estou aprendendo, também. eu estou aprendendo com vocês a ser professora. ainda estou tentando descobrir como ser a professora que eu quero ser, ou ainda, descobrir a professora que eu quero ser. olhos abertos, ouvidos abertos, peito aberto. não digo a eles porque eles não fazem ideia do cansaço que é tentar ensinar, então quero poupá-los: se eles me ensinam a ser e a não ser, que seja assim, no espontâneo. na saída de uma das aulas, viro para c. e pergunto se ele acha que vai dar certo, a apresentação da dissertação. claro que vai, ele diz, você é boa falando. abro um enorme sorriso e a defesa da dissertação diante de professores tão estimados por mim, cuja opinião vale tanto, parece tão, tão menor do que um menino de quinze anos, com toda a displicência e sinceridade, me dizendo que sou boa falando. 

são oito e quinze de um domingo e eu não planejei direito minhas aulas da semana. tenho apenas uma vaga noção de algo a falar e a fazer amanhã. e a cada dia a angústia de estar ou não fazendo a coisa certa, do jeito certo. e desejando, no meio dos erros todos, que são muitos, que algum dos acertos conte e que eu possa ser a professora que eu gostaria de ser. 

assum branco, alma-de-gato, avalovara, amor

ontem eu resolvi reler avalovara. 

ontem também, no meio da leitura de suas primeiras páginas, fui acometida pela lembrança da música assum branco: quando ouvi o teu cantar, me lembrei nem sei do que. me senti tão só, tão feliz, tão só. só e junto de você.

eu sinto vontade de digitar essas palavras de novo. realmente digitá-las, não só copiar e colar aqui. me senti tão só, tão feliz, tão só. só e junto de você. apertei outra vez todas essas letras. sinto que esses versos comunicam algo que é e não é secreto. que é e não é evidente. que pode e não pode ser dito de outra forma. tão-feliz-tão-só. só-e-junto-de-você.

avalovara é o meu livro de amor. eu amo muitos livros. eu amo os livros. é engraçado isso, amar os livros. parece bobo e tem que ser bobo. parece sério e tem que ser sério. é a grande bobagem da minha vida, e eu a levei a ferro e fogo. posso fazer uma rememoração dos livros na minha vida, vou evitar. se você não é novo aqui (aqui, o blog; aqui, a ordenação do meu pensamento), deve saber que as coisas me emocionam. fatidicamente, as coisas me emocionam. inevitavelmente. às vezes eu canso, às vezes não. quando falo de avalovara, não espero que outras pessoas amem esse livro. ele se sustenta sozinho, é óbvio. ele não precisa de mim, é bem o contrário. é que minha relação com ele me parece uma outra coisa. uma outra coisa inclusive em comparação a minha relação com outros livros. é como se esse livro existisse de uma maneira completamente diversa para mim. no geral, quando falo de grande sertão com pessoas que não leram, a expectativa é quase de: preciso que você sinta isso também. não é o caso com avalovara. algo será sentido, até mesmo tédio. mas não será também.

ontem, lendo, fui tomada por uma melancolia enorme. pensei no ano de 2019, seis anos atrás. tentei lembrar de como eu era com vinte e quatro anos. o que eu sentia? como me movia no mundo? sentia ainda muita falta de fortaleza. sentia muita falta dos amigos de fortaleza. minha amiga marina ainda morava em goiânia, a gente se via só de vez em quando. sentia falta de um amigo que tinha feito e perdido dois anos antes. sentia falta de mercúrio, que tinha morado um pouco em brasília e eu não tinha aproveitado a dádiva. em uma aula no último horário da noite, uma professora deslumbrante começou a falar desse livro que eu nunca tinha ouvido falar antes. ela falava com paixão profunda. eu pensei: eu quero sentir isso também. fiz um tweet de brincadeira: alguém quer me dar um livro chamado avalovara? minha amiga mary, que não pode ver uma dessas, prontamente o comprou pra mim. mas a leitura só viria no segundo semestre daquele ano, quando a professora montou um clube do livro de alunos interessados (após muita insistência minha e de um menino daquela aula que perguntou, na cara dura, se eu tinha twitter. eu nem consegui negar. matheus, eu te amo). 

minha primeira leitura de avalovara se estendeu por mais de um ano, porque o clube do livro virou um grupo de amigos e a gente conversava mais do que lia. matheus, karol, gabi, luciana: eu amo vocês. eu amo todos os nossos encontros, os livros em cima da mesa dividindo espaço com bolinhas de queijo, café, chopps, nossas mãos agitadas, nossas vozes sobrepostas em mil assuntos, mil vezes a pergunta "vamos tentar ler um pouquinho?", não ler um pouquinho. o prazer de sentir que estava fazendo amigos assim, ao vivo, em tempo real, semanalmente, aquelas palavras do osman costurando a gente juntos. veio a pandemia e líamos o livro por chamadas de vídeo. avalovara fez um feitiço de amor para mim. passar mais de um ano lendo um livro que me obcecava a cada palavra foi diferente. geralmente, eu engulo tudo de uma vez. consumo as coisas rápido demais. com ele não foi assim. e não só foi devagar. foi junto. 

em novembro de 2020, mesmo mês que terminei a leitura, me deparei pela primeira vez com o alma-de-gato da árvore da frente do meu quarto. que pode não ser o mesmo, e pode ser sempre o mesmo, e com sua imensa cauda bem que poderia ser um avalovara. é importante e fundamental que o avalovara seja um pássaro. 

a segunda leitura foi rápida. o começo de 2021. li cada frase copiando e colando de um pdf em um arquivo para que meu amigo cordeiro pudesse criar o avalobot no twitter. um arquivo imenso, o livro inteiro separadinho de maneira a caber no limite de caracteres. ainda no começo de 2021, com outro clube do livro. dessa vez, eu seria a guia da leitura. que engraçado. lembro com carinho desse clube, benji, água, cameio, kini. as conversas pelo discord no domingo à noite. no mesmo ano, meu ex-namorado me mandou uma mensagem anônima falando sobre meu vídeo de avalovara (na época, ele não era ex-namorado, claro. nem namorado ainda). penso nele lendo avalovara para chegar perto do meu coração. ele lia e me comentava coisas, passagens. primeiro por mensagem, depois ao vivo. lembro de ele ter guardado o final para ler comigo. ele me levou até o martinelli. lembro de lermos o final juntos, no aeroporto de congonhas, terminando o livro minutos antes do meu voo de volta pra brasília. passei três anos sem reler avalovara, mas nunca desvinculada dele. meu prazer era abri-lo pra reler as mesmas passagens uma vez e mais outra. tantos trechos lidos repetidamente. em tempos recentes, um homem parou de me beijar para dizer que estava começando avalovara e por ter visto tanto o símbolo da personagem a que chamamos de tantas possíveis formas tatuado no meu colo, a imaginava com a minha aparência. fiz a única coisa possível diante dessas palavras e, claro, voltei a beijá-lo. 

como sentir isso também, se quando eu abro o livro ele não é apenas o livro, mas esse monte de gente, um monte de amor, um monte de saudade? e também: não são muitos dos livros exatamente isso? ricardo piglia ou emilio renzi escrevendo em seu diário que se recordava dos livros importantes não pelo conteúdo, mas dele mesmo enquanto os lia. osman lins escreve: avalovara, o pássaro do meu contentamento. o que mais eu posso dizer se ele já colocou aí todas as palavras? o livro do meu contentamento. abro o livro, uma porção de vozes saltam. as de dentro dele, as de fora dele. tudo misturado. abro o livro e ele tem um monte de beijos, os dele e os meus. minhas lágrimas unidas a todas as lágrimas dele. nossos apaixonamentos juntos. nossas raivas coladas. eu vivi muito com esse livro do meu lado. me senti tão só, tão feliz, tão só. só e junto de você. como é possível que existam esses versos que traduzem tão bem uma relação possível com a leitura, e com o mundo? olhar as páginas do livro, olhar as árvores. tão só e junto de você. não tenho medo de concluir, no final, o contrário do que falei no início: talvez você sinta isso também, só não com esse livro. talvez você sinta isso também com esse livro.

eu sinto que sou muito aberta às experiências das outras pessoas. de leitura, sim, e de todo o resto. eu gosto de saber. eu tento entender. de vez em quando, eu entendo. então eu entendo que em alguns momentos o livro possa ser maçante, que ele possa causar angústia, que ele possa causar algum tipo de temor da incompreensão. e ao mesmo tempo, esse livro, os livros, são tão mais do que isso. não? algumas vezes? como é que a gente faz amigos? o que é que nos vincula tanto a outras pessoas? fazer amigos, se apaixonar, estar perto. um monte de palavras. eu sinto vontade que as pessoas leiam avalovara porque mais do que tudo, eu acho bonito. eu sinto vontade que os meus alunos leiam qualquer coisa porque queria que eles encontrassem essas formas doidas de beleza. obsessivas. essa coisa que coloca as palavras de outras pessoas diante da gente e refaz nosso pensamento. o desejo de que todo mundo possa sentir, também, como a música: tão só, tão feliz, tão só, só e junto de você. 

um exercício, ou: lições de anatomia

disse a você que poderia escrever parágrafos sobre te ver beijando outras pessoas. é mais do que isso, claro, sempre é: penso em você se mexendo em festas, dançando, beijos na boca inclusos. você com um sorriso brincalhão, contido, safado, bonito. você e suas decisões feitas com receio e com gosto: para onde ir, que filme ver, com quem encontrar, o que dizer. tudo entre o prazer e a dor. queria me desfazer do ânimo de ser narradora, parar de observar desse jeito, você não é um personagem e ainda assim acho irresistível e inevitável esse olhar, sorrir diante do seu sorriso, coração acelerado junto com o seu às sete e meia da noite, ouvir suas palavras com a vontade de registrá-las; querer viver todas as coisas, querer viver pra sempre. digo a você que reza de homem profano é mais forte. digo a você que você é o príncipe da luxúria, um vereador numa terra sem vereadores. digo a você: não seja cruel. dizem a você que você é o bataille do cerrado. digo a você, dizem a você: um monte de palavras de outras pessoas se acumulando ao seu redor, criando sentidos, fabricando percepções. queria desfazer tudo, a minha e as dos outros, deixar só as suas ou só as que valem a pena. chega de palavras, vamos aos gestos, e ainda assim, gosto tanto das suas palavras hesitantes e tão pensadas, gosto ainda mais das impensadas, os gestos condenáveis, todas as broncas que você leva por mau comportamento no parquinho. eu não sou narradora, mas se fosse, você não é personagem, mas se fosse – um destino selado e traçado da evidente predileção, o carinho narrativo, narradora e leitores se apaixonando juntos, página a página. sempre é tão bom por os olhos em você, melhor ainda notar como os outros também gostam, um mundo cheio de pessoas desconhecidas que estão sempre te cumprimentando. de onde vem tanta gente? ou da burocracia ou da esbórnia. sinto vontade de perguntar: posso ser sua amiga? como se já não fosse; posso chegar perto?, como se já não estivesse perto. uma fascinação estranha e interessante. dez parágrafos sobre o prazer de ver você beijar outras pessoas condensados em algumas frases: como suas mãos se mexem, seus olhos fechados, eu sempre gostei do desejo, você se torna eros – o desejo dos outros e o seu misturados, algo novo e brilhante. coloco minhas mãos no seu rosto e digo que te amo tanto. dou risadas enormes do seu lado, você é cheio de absurdos. brinco de quebra-cabeça com o que você me conta. imagino você adolescente, impossível adolescente, com as mãos trêmulas? suadas? com a ansiedade batendo no fundo da sua garganta? o papel na mão, o recado: ele gosta de garotos, o que você sentiu? alívio, tontura? anos depois, outro papel, outro recado, e agora? tormento, tesão? o que você pensa e o que você sente, do que você tem medo e do que você tem gosto: eu quero saber. você fecha os olhos e deixa que uma criança desenhe seu rosto com caneta vermelha, permanente, permanente também o seu sorriso. a criança olha o próprio trabalho e diz: você é igual a deus. a crítica literária que puxa você para um beijo na alta madrugada, mais uma história que só podia ser sua, sua, sua. vai deixando seus pedacinhos com os outros no caminho, tanto de você espalhado por aí no canto da boca e em tantos suspiros. tem espaço ainda? queria ter chegado antes, e também não queria. gosto da hora que é e como é. você – bonito e doido, tempestade no meio da tarde. fica aqui pertinho que eu gosto de te olhar.  

um beijo nos joelhos, ou:

onde eu coloco toda essa lamúria?

estou obcecada com minha nova profissão e faço disso um assunto com todas as pessoas. faço de tudo um assunto com todas as pessoas. anne carson escreveu: o que eu faço com os meus olhos? e eu repito: o que eu faço com os meus olhos? olho para as crianças, que são adolescentes, algumas das crianças têm até mesmo dezoito anos, imagine só, e penso nelas com todo o carinho do mundo. sou professora há tão pouco tempo que não deu tempo ainda de ser derrotista, derrotada ou desinteressada. vivo com o eterno receio de que meu espírito não seja tão inquebrantável assim. os deuses vão me punir por acreditar que eu posso acreditar até o fim. um aluno está maravilhado com eu ter lido senhor dos anéis e saber o que é um rpg de mesa. eu estou maravilhada com o maravilhamento dele, e triste. meu deus, como pode ser assim tão solitária a infância? acabei me deparando com um vídeo meu adolescente. eu com dezesseis anos. eu com a idade dos meus alunos. não adianta: pensei tanto pensar sobre minha adolescência, estava enganada. ou melhor. eu tenho uma porção de registros da minha escrita adolescente. mas não era suficiente. mais uma vez, a vida, sempre, maior do que a literatura. olhei para a adolescente que fui e fiquei sem reação. as palavras, o jeito. sou eu, claro, evidentemente, sou eu, eu sou essa pessoa, e ao mesmo tempo é estranho que eu tenha sido já assim.

fico tentando escrever como forma de tirar algo de dentro de mim. a lamúria, as lamúrias. 

ela me perguntou como aconteciam comigo tantas coisas dignas de nota. com todo mundo, não acontecem coisas dignas de nota? ou tudo é digno de nota? eu sou aquela imagem de uma página inteira grifada a marca-texto: tudo é importante. o que eu faço com esses olhos? olho para você pela última vez tão de perto e penso que queria muito adiar o fim, o fim, sempre o fim, inevitável fim. falo em voz alta, nervosa: o que é gostar de alguém, se não adiar o inevitável? fico serenamente triste, tristemente serena. posso uma vez mais que seja pressionar meu rosto contra o seu? não. lembro de olhos fechados, meus olhos fechados, o desejo nunca realizado de poder ficar mais um pouco, não ir embora, conseguir voltar a trás, desfazer, refazer. posso sentir sua respiração, seu coração, sua pele, seu cheiro, sua voz, suas mãos, seus dentes? não, não, não, não, não, não, não. tudo impossível, três-tantos-impossível. queria morder a língua e calar a boca, mas não queria, não. o que eu faço com essa voz? aprendi a ser solene e séria por essa via, escrevendo na lousa: o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. o narrador também não. converso com um senhor na rua carregando caixas de seriguelas, eu gosto muito de seriguelas, são a cara da casa dos meus avós em sobral, a casa que não existe mais. esse senhor olha para mim com algo que beira a timidez e diz: você é uma moça muito bonita. com vergonha e sem desejo. olho para ele surpresa e espantada, abro a boca e gaguejo um obrigada, começo a rir e e ele também, nos despedimos. você me diz que eu sou bonita e eu balanço a cabeça, negando, não posso ser. você segura meu rosto, firme, olhos firmes diante dos meus temerosos, voz firme repetindo: é, sim. é, sim. 

eu não tenho nenhuma criatividade, mas acho que sei olhar e contar. meu amigo caique me disse que isso bastava, já tem ideia demais no mundo.

o meu pai, um homem triste, tão triste. eu triste diante dele triste. ele olha para o passado e rememora, conta para mim coisas de outros tempos, conta para mim da vida anterior a mim. fui a contagem regressiva para o fim dos seus sonhos. eu olho tanto para trás, ele também. a eterna angústia de não conseguir fazer com que as coisas deixem de estar afiadas entre nós. engulo em seco a certeza de que poderíamos nos dar bem, nos dar tão bem. ele sempre chora no final de orgulho & preconceito, a cena do mr. bennet vendo a alegria da lizzie. o que deu errado? tento ter carinho, e tenho, abro a boca e saem escorpiões. a única pessoa no mundo com quem eu não consigo ser compreensiva na hora imediata, só antes ou depois. o que eu faço com os olhos? olho para os dele, pequenos como os meus. o que a gente fez de errado? poderia ser muito pior, poderia ser muito melhor. em algum lugar das ruínas, corto minhas mãos tentando mais uma vez descobrir o que há no fundo. em algum lugar das ruínas, ralo os joelhos pensando que posso colocar algo no canto certo. em algum lugar das ruínas, lembro que não existe canto certo, só o resto de tudo desfeito e o que faremos a partir daí. 

falo muito de mim mesma, tenho impulso de pedir desculpas, lembro que isso é apenas um blog, lembro que falar de mim mesma é tentar falar de alguma outra coisa também. o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. 

cansei desses olhos, posso trocá-los? agora é tarde, tarde demais. muito medo de mudar e dar muito errado, medo de não mudar e também dar tudo errado. lembro da menina adolescente que eu fui, vejo que não mudei nada e mudei tudo. o que faço com o olhar? olho para os alunos, penso que muitos deles são tão legais. pessoas legais. imagino-os no futuro, torço para que sejam felizes, que entrem na universidade, que se divirtam, que descubram que o mundo é grande. é possível sentir tanto carinho assim por essas pessoas tão terríveis e estressantes, irritantes e barulhentas? elas me cansam, no último horário eu não aguento mais falar, erguer a voz parece um crime contra o meu corpo. tenho que repetir de novo? ficou claro o que eu disse sobre o eu-lírico? vou dar um exemplo. alguns anos, vivi em itabira. silêncio, afirmações. quero sentar, estou cansada. quero ficar calada, cansei de falar. quero fechar um pouco os olhos e dizer: tudo bem, mexam nos seus celulares. uma menina bate na porta e me pede indicações de livros de romance. uma menina me chama e pergunta se eu acredito em deus. uma menina me chama e pergunta qual a minha sexualidade. um menino me chama e diz que eu sou uma das poucas professoras legais. morro de medo de ser uma professora legal: estou fazendo tudo errado, então? vocês não deviam me achar legal. eu queria ser menos sorridente e achar vocês menos engraçados. não, professora, por quê? porque rindo tanto de tudo, como vocês vão me levar a sério quando precisa? e aí vou explicar, anotar coisas no quadro, e silêncio. como pode todo dia, toda aula, todo minuto ser diferente? que profissão é essa? os alunos me perguntam se eu sou professora de português ou de história, e eu digo: uai. de literatura.

estar triste por esses dias me cansa muito. eu também estou feliz e animada. o que eu faço com essa lamúria? acho tudo muito engraçado, não sei qual a verdade. eu sou triste e solar. eu sou feliz e ensimesmada. alguém me disse há um tempo que tudo era verdade. outra vez, abro os braços diante da tal experiência humana. o bom, o ruim. dia desses, perguntei aos meus amigos: o que tem de errado comigo? e respondi aos meus amigos: eu sinto que nada, não parece ter nada de errado comigo. olho para a adolescente do vídeo, lembro que ela achava que tudo, absolutamente tudo estava errado com ela, nela. nos olhos dela. o que eu faço com esses olhos? olho ao meu redor e me sinto cansada, muito cansada, e continuo olhando. 

eu quero reabilitar a feiura



sim, eu continuo no tópico da beleza. ou da aparência. ou qualquer coisa assim.

queria que essa não fosse uma preocupação constante, mas sendo, vou lidar com ela desse jeito que lido com as coisas. alguns posts atrás, falei algo sobre sentir um certo prazer em ser feia e ser desejada. ser desejada sendo feia. é claro, no fundo, toda conversa sobre ser bonito/ser feio é muito permeável. tudo existe em percepções demais: a minha, a do outro, a da sociedade, que se mistura na dos indivíduos. é uma flutuação que é e não é óbvia.

um exercício que faço com constância e que com constância vejo ser feito na internet é o de olhar fotos de um passado (recente, normalmente) seu e pensar: ah, eu não era tão feia! ou que era bonita. ao contrário de agora. e repete. o agora vai ser passado recente, e no novo agora, pensarei a mesma coisa. a versão mais brutal disso, claro, é com fotos da adolescência. olho para a adolescente que fui e quase sinto falta de ar. um grande desejo de poder falar para ela o que eu sei agora. o descompasso temporal dura para sempre. as descobertas só chegam depois. 

quando digo que quero reabilitar a feiura é que eu acho importante se achar bonito. e eu acho importante não se achar nada. e eu acho importante se achar feio e viver. normalmente, eu me sinto assim: feia e muito viva. feia e com tesão. feia e desejada. feia e triste. feia e com raiva. feia e a pessoa mais simpática do mundo. 

eu gosto muito da beleza. fico espantada com as coisas bonitas. e acho que o mundo está cheio de coisas bonitas (e de coisas feias, é claro). amo muito os passarinhos, eles são lindos. penso em outros bichos que existem na terra e que causam nojo ou desgosto (claro, 

[o texto acima data do dia catorze de outubro de 2024. a partir daqui, estamos em fevereiro de 2025]

me parece ridículo gastar tanto neurônio com a aparência. com a minha aparência. me parecia ridículo quando eu tinha quinze anos, mas perdoável. aos trinta anos, é ridículo e imperdoável. especialmente agora que existe mesmo tanto horizonte pela frente. eu sou professora de literatura! caramba! desde o início do ano. só preciso do aval do meu orientador pra poder berrar que terminei a minha dissertação. vou começar o doutorado no final de março. os meus amigos, eu os amo absurdamente. não estou em escassez de beijo na boca. e isso pra falar apenas da minha vidinha de poucos problemas. imagine, se algo sério de fato estivesse acontecendo na minha vida. a aparência é algo tão pífio. pra que se importar tanto? 



assisti recentemente império dos sentidos e achei uma linda história de amor. o tweet do caio hoje me fez pensar: será que eu amaria tanto o amor se fosse incontestavelmente bonita? bonita de nascença? o que eu não quero com esse post: coitadismo. é terrível falar sobre não ser bonito e sentir que os outros estão imaginando que eu quero só ouvir que eu sou bonita. não é isso. eu até me acho bonita, e é quase um prazer culposo, como se a qualquer momento fossem abrir a porta e me flagrar me achando bonita e apontar o dedo e rir ou falar de como estou fazendo errado. isso deveria estar num parêntese, não ser bonita de nascença, ou não ser obviamente bonita. dizer isso me parece um ressentimento com quem tem essa beleza, e deve ser. eu devo ser muito ressentida. a coisa de ver alguém ter algo que você não tem, e nunca vai ter. quase como: eu posso ser bonita, mas não é dado. acho que sou uma pessoa charmosa, divertida, com quem os outros gostam de conversar, e amo muito isso e ser assim. mas absurdamente tudo cai por terra quando me deparo com uma pessoa [B]onita. posso até impressionar quando abro a boca e o coração, mas é isso, é até aí. preciso abrir a boca e o coração pra isso. 

de volta ao império dos sentidos e ser uma linda história de amor e o amor. me perguntei se amaria tanto o amor se etc. quase como se precisasse ser esquisita, ter sido esquisita, continuar um pouquinho esquisita pra poder assistir ao filme e me sentir enternecida, assistir ao filme e pensar com carinho naqueles personagens e na tranquilidade e na falta de susto de estar sob a mira da faca de alguém que se ama. quase como: eu preciso (precisei? preciso?) ser feia para achar isso bonito. preciso ser, ter sido, ser feia para olhar para o amor desse jeito. isso é verdade? isso é só uma tentativa de consolo? é preciso ser ou ter sido feia para olhar o mundo desse jeito, ou não? é preciso ser ou ter sido feia para pensar sobre sexo do jeito que eu penso, ou não? é preciso ser ou ter sido feia, ou às vezes ser feia, às vezes não ser nada, às vezes ser tudo, pra ter esses olhos e esses ouvidos, pra pensar desse jeito, pra querer as coisas desse jeito? ou não? sinto que estou cercada de pessoas bonitas e obviamente bonitas, e aí elas me dão seus relatos de adolescências esquisitas (o que nos une, afinal) e penso: qual é a obviedade da beleza, então? 

na adolescência, ser feia era um fato. não havia espaço para discussão. a única vez em que não fui feia na adolescência foi quando um menino que era conhecido e simpático com meu grupo, mas não do meu grupo e nem da minha sala, que estava na minha frente na fila da secretaria, colocou as mãos no meu rosto e disse "morgana, você é bonita", depois resolveu suas questões escolares e se despediu de mim como se nada tivesse acontecido. não ficamos amigos. ele só me deu esse presente e foi embora. penso muito nele e penso nele toda vez que quero muito elogiar alguém de quem não sou tão próxima, ou não sou próxima de forma alguma. uma janela. 

volto ao tweet de juru que abre essa postagem. não de um jeito tadinha, mas de um jeito brilhante. a moça feia debruçada na janela (vocês já sabem). eu gosto muito de que seja uma moça feia. mesmo. moça feia na janela achando que a banda toca pra ela. poderia ser uma tiração de sarro: moça feia, acha mesmo que a banda estaria tocando logo pra você? que é feia? mas não é isso. não, não. a beleza da banda é tanta que até mesmo a moça feia, que não deve receber prenda alguma, reconhece essa prenda. acho que a mente dela é brilhante.

minha amiga rafaela tem um olhar embelezador. parece algo engraçado de se dizer. ela me acha muito bonita, e eu acredito. quando ela me olha e me diz isso, quando ela me diz isso de longe. sinto que é real e que diante dela eu sou mesmo bonita. enquanto eu escrevo isso, ela acaba de me dizer por mensagem que eu deixo as pessoas mais bonitas do que elas realmente são. achei tão engraçado ter escrito as frases anteriores e receber essa frase vinda dela, que me deixa bonita. rafaela continua falando e diz que eu sou apaixonada pelo mundo, que eu vejo tudo mais bonito, e que as pessoas não são exceção. é engraçado que ela me aponte isso e não ache isso de si mesma, embora esteja sempre me dizendo coisas bonitas, e dizendo que eu mesma sou bonita. minha amiga rafaela é bonita e engraçada, bonita e doidinha, bonita e divertida, obviamente bonita e obviamente esquisita: então é por isso que ela consegue ter esse olhar?

comecei a escrever esse negócio em outubro, continuo escrevendo agora em fevereiro, sinto que estou andando pra trás nessa questão. sinto que tive épocas bem mais tranquilas. sinto que normalmente opero no nível da neutralidade. sinto que, sinto que. imagino com amargura que a aparência é um empecilho para algumas coisas: costumo pensar que se eu fosse [B]onita, isso jamais estaria acontecendo. se eu fosse bonita, não haveria dúvida. se eu fosse bonita, não haveria hesitação. se eu fosse bonita, isso e aquilo. se eu fosse bonita, eu nem precisaria abrir a boca.

acontece que eu gosto de abrir a boca. 

um exercício, ou: devoramos poetas

yes a cliché
and i do not apologize because as i say i was not to blame, i was unshielded 
in the face of existence
and existence depends on beauty


poeta, escuto a voz de lorca modulada pela de cohen modulada pela sua. penso que preciso prestar atenção, prestar toda atenção do mundo. i gave her something pretty, ele-ele-você diz, and i waited until she laughed. momentos depois de outra coisa, eu rio, você ri com a invenção de orfeu debaixo do braço. poeta, eu existo na sua risada. pelo resto da noite, fico impressionada pela confluência das três vozes, como três planetas alinhados, como um eclipse total do sol. tantas vezes na minha vida sou assolada pela dúvida diante dos meus olhos: eu posso ver tudo isso e sair impune? eles me respondem com a precisão que me falta: é claro que não. você nunca sai impune. sinto vontade de perguntar se você sentiu que era importante também, e desisto. perguntar é caçar uma verdade que não precisa muito para ser encontrada. poeta, eu não sirvo para musa. é preciso, novamente, praticar uma inversão. coloco você nessa posição, as palavras são minhas, oriento o olhar dos outros. se pudesse escolher uma só parte de sua anatomia para transformar em soneto, você já sabe, seriam as mãos. olho para elas com o prazer que olharia para um grande felino antes de encontrar o fim em seus dentes, para um raio partindo o céu ao meio, para as cores brilhantes de uma cobra coral, para um imenso galho de árvore prestes a despencar. na imaginação, sempre aceito morrer com imensa docilidade: atropelada porque distraída com a música no fone de ouvido; diante de um animal selvagem; debaixo do seu olhar. tudo me mata, e deliciosamente. coloco minha mão sobre seu braço apenas para ter certeza de que ainda não chegou a hora de ser abocanhada e não tenho certeza alguma. quero antecipar seus passos e seus gestos, quero adivinhar o jeito que suas mãos vão acompanhar sua fala. quando você diz algo, seu corpo inteiro se move junto. quando você canta, quando você dança. digo: você se mexe tão bonito, e você dispensa o elogio com uma piada. suas mãos vão de um lado para o outro, os ombros, as pernas, o mundo todo uma impossível pista de dança. quero entrar na dança, não consigo: palavras que morrem atrás dos dentes, passos que ficam congelados no tempo. você faz do meu corpo a imitação de um instrumento musical: cordas e teclas nos meus braços e ombros, o ritmo de todas as músicas que escutamos transformado em tato, e eu gosto. poeta, coloca seus dedos na minha boca, seu dente na minha ferida, sua língua misturada a minha. sinto desejo de consumir, abocanhar, devorar. você resolve minha vontade de me tornar monstro. conseguiria incendiar tudo apenas com a chama da minha ideia. sinto um prazer imenso quando você me ordena: lê. quando você diz: eu quero que você leia. tanto prazer com as palavras. tanto prazer com o caminho que você me revela tortuoso pelas suas palavras, que até a angústia se torna doméstica, ronronando no meu peito. tanto prazer com as suas palavras e prazer com as minhas quando você as escuta, distraidamente atento. olho para você e é como estar diante: do mar, duma cidade, duma pedra, duma refeição, dum pássaro, dum polvo, dum besouro, dum gato. duma música. é como estar diante de uma música. o amor, a pergunta: como posso engolir o meu amante?, e rio, poeta, porque sei que você jamais seria engolido por mim, apesar do meu desejo. sou eu que estou entre os seus dentes – e isso quase não tem importância alguma. peço que você beije os meus joelhos e imagino o gesto como uma espécie de bênção: assim você também pode me ensinar a partir. 



a cã

quatro meses atrás, a essa hora, eu estava indo na veterinária pela primeira vez na noite. mas não é isso que importa. o que importa. o que ...