quatro meses atrás, a essa hora, eu estava indo na veterinária pela primeira vez na noite.
mas não é isso que importa. o que importa. o que importa? dia desses, eu tive um momento tão óbvio na análise que só restou uma risada compartilhada entre mim e a analista. falei que antes de ir ao consultório, tinha tirado um cochilo em casa e sonhado com a cã. falei que não sabia o motivo. falei que no dia anterior, tinha sentido muita saudade dela. falei que naquela manhã, tinha lido a morte da baleia para os meus alunos. foi aí que fiz "ah!", e aí as risadas todas. quanta obviedade. a morte da baleia. o sonho. você, criaturinha.
você fez a viagem até nossa casa em uma caixa de sapato. presente de um amigo do meu pai, da época da faculdade, da ninhada dos seus dois cachorros. fomos buscar você na casa dele. coisa minúscula. menor do que uma chinela tamanho 37. seu nome ia ser lilith, mas um final de semana antes eu estava no cinema com meus amigos e passou o trailer de um filme de terror sobre uma criança possuída por lilith. eu sempre fui muito medrosa e atenta aos presságios. melhor algo mais banal, comum, corriqueiro: lola. um nome muito 2010. era 2010. isso importa? você na caixinha de sapato, no meu colo. você na imensa caixa em que o rapaz do crematório te colocou, catorze anos depois.
parece loucura se eu digo que quando fecho os olhos, consigo sentir na palma da mão a textura do seu pelo? contando do sonho que tive, lacrimejando. sentir nos braços o seu peso. não quero nunca acordar. perguntas: eu brinquei o suficiente? será? será que dei atenção suficiente? será que as coceiras e as cócegas foram suficientes? para você. para mim, não foram. para mim, podiam durar ainda muito, muito, muito tempo.
às vezes eu penso que daqui a quase quinze anos, vai chegar o dia em que vou pensar: agora eu vivi sem você o tempo equivalente de viver com você. o que é um pensamento cômico, já que eu tinha vivido quinze anos antes da sua chegada. eu já vivi o tempo equivalente sem você. só não lembro como ele era.
dos quinze aos trinta anos, eu vivi uma rotina irrecuperável. a cã. ela. animalzinha. ver um bichinho dormindo e pensar em como ama esse bichinho que está dormindo. olhar para a porta e ela estar lá. chegar em casa e ter sua recepção. ver um bichinho envelhecer e continuar com carinha de bebê. mesmo cego. mesmo ficando sem dentes. dedicar amor a um bichinho. um bichinho dedicar amor a você. eu sempre falo como fico feliz que os animais brincam, você e eu, animais que brincam. como eu não vou morrer de saudade? eu vivia tão preocupada com o dia da sua morte. eu chorava só de imaginar, muito menos do que o que choro agora. agora. agora mesmo, enquanto escrevo isso, e choro, choro, choro, pensando que é impossível explicar-entender a não ser que você também tenha um bichinho. não que eu não acredite na empatia das pessoas que nunca tiveram um. é que você tem que saber o que é a pura presença física de um animal sem palavras. como a casa existe muito menos para você do que para ele. como a casa existe ao redor dele. o que ele precisa para viver, o que ele não pode alcançar, o que ele tem que fazer. imagine a presença. imagine a sua casa, a sua rotina, a sua vida. a comunicação por uma via que não a da nossa linguagem, mas uma outra. imagine tudo isso, e todos os anos disso, e então o fim disso. pronto. acabou. essa vida que você sempre soube que seria curta, acabou.
a casa sem a cã. lembro de voltar da clínica veterinária, depois do seu corpinho ter sido recolhido, entrar no apartamento e ver sua caminha no chão da sala. a casa, a sua casa. as suas coisas. as suas coisas sem você e a sua casa sem você. meu deus do céu, como é possível você não estar aqui?
um dia, chegando de madrugada em casa, a cachorrinha da vizinha latiu e eu parei com a chave na porta e o coração acelerado porque ouvi direitinho o seu latido e por um segundo bêbado e sonolento, fez todo sentido imaginar que era você latindo. nos primeiros dias após a sua morte, meu corpo em alerta na hora do seu passeio, um cutucão no cérebro repetindo que eu não estava fazendo algo que devia fazer. eu estou reclamando muito? ela morreu com quase quinze anos. o que mais eu poderia querer? cinco anos, pelo menos, ou três, ou dois, ou um dia a mais, talvez? um dia, uma semana a mais? só mais um pouquinho? você, tão pequenininha. só uma vezinha mais.
não tem nada aqui além de saudade. penso: amá-la foi o maior privilégio de todos. seu corpinho encostado ao meu. as numerosas lambidas. os arranhões e os latidos. criaturinha maluca, voluntariosa, amável. minha criaturinha nesse mundo. e eu, a sua.