na ocasião de meu primeiro ano como professora

vou escrever em uma folha de papel o nome de todos os meus alunos desse ano.

penso isso ao longo das últimas semanas quase obsessivamente. eu preciso saber os nomes deles para sempre. fico repetindo isso para mim mesma: para-sempre-para-sempre-para-sempre. eu devo ainda talvez ter tantos alunos na minha vida (sim?). eu vou esquecer seus nomes. mas queria não esquecer esses nomes. esses nomes em particular. sinto que já esqueci o nome dos meus primeiros alunos, aqueles, que conheci em vinte e cinco de outubro de dois mil e vinte e quatro. aqueles com quem convivi por menos de dois meses, mas em dez dias já tinha decorado todos, todos os nomes, surpreendendo a eles e principalmente a mim, que ao olhar para a lista de chamada, pensei: é impossível, é impossível. eu nunca vou saber. 

mas eu soube. naqueles menos-de-dois-meses, com alunos que me fizeram chorar, com o coração acelerado todos os dias antes de entrar na sala de aula me perguntando o que eu estava fazendo, meu deus, será que eu estou fazendo direito?, eu sei montar esse brinquedo?, isso vai dar certo, é possível que isso dê certo, eu algum dia vou pensar em outra coisa na minha vida além desse espaço etc. etc. etc. etc.? eu soube seus nomes, eu sabia suas vozes. hoje: escuto as vozes dos meus alunos antes de vê-los e sei que é cada um. eu sei seus nomes. meus alunos que estão comigo desde o começo do ano, por bem mais de dois meses, meus alunos que completam comigo meu primeiro ano como professora. 

um deles me diz (sinto vontade, já aqui, de escrever seu nome. uma violação? e ainda assim, é um nome tão comum, um nome que meus amigos até riem quando veem associado a mim, de tantos desses anjos anunciadores que conheço. escrevo seu nome sem escrevê-lo) que eu sou a professora que ele mais gostou na escola. eu acabei de chegar na escola! um aluno me diz que farão um clipe de uma música chamada gabriela, mas não é a que eu penso que é, descubro que é uma música de kpop (, claro). então outro aluno, criança (-adolescente, eles não são crianças) viada diz: ela tá pensando na da gal!, e eu penso e falo: se fosse na universidade, nós seríamos amigos!, me perguntando se eu deveria ou não apresentar o termo mpbicha a ela. cedo demais.

a escola é cheia de amigos da escola conhecidos em outro tempo. 

cresci em uma escola que pouco modificava seu corpo docente. descubro que não é assim (aqui? mais?). cruzo os portões da escola cansada, com sono. animada e feliz. cruzo os portões da escola desde já com preguiça de falar. com vontade de ver os meus amigos. sinto o coração inundado, ou em chamas. diante dos alunos, levanto as sobrancelhas quando eles mencionam os meus amigos da escola. vou a um passeio pela primeira vez como professora e não como aluna. lá, um deles ganha um ursinho de máquina e me dá de presente. eu recuso, porque é dele, e ele tem quinze anos, e eu trinta. porque eu não mereço um bichinho de pelúcia de máquina, uma coisa dessas, tão rara. é ruim recusar presentes, porque é bom dar presentes, eu sei, eu sei, é bom dar presentes e vê-los aceitos, passa-se um instante, o ursinho caminha por diversas mãos, o aluno retorna, professora, se você aceitar eu que vou agradecer, então eu aceito e agradeço, agradeço. 

um dia antes disso, outro aluno (o autor do primeiro recadinho em caderno de aluno que recebi na vida: professora, eu durmo na sua aula porque sua voz parece a da minha irmã, e me acalma. que lindo pedido de desculpas. eles devem ver nos meus olhos que eu sou uma tola, uma tonta, uma mole, e que eu vou cair, e cair sorrindo) me diz que queria me dar um presente de dia dos professores, mas não tinha dinheiro, mas então teve dinheiro!, e comprou (abre a mochila) uma rosa, de plástico, lamentando o plástico: seria melhor uma de verdade, e eu não acho, não, não seria, uma de plástico eu posso guardar para sempre, como posso guardar seu nome, (violação sem violar:) na cova dos leões.

estou sentada na minha mesa de pernas cruzada sobre ela e seis adolescentes estão de pé ao meu redor e me dizem que eu poderia ser professora de tudo, tudo, menos de português. um deles fala: você dá aula de história, de artes. uma diz: você dá aula de sociologia. penso no riobaldo: eu queria decifrar as coisas que são importantes. eu queria falar das coisas que são importantes. sinto minha falha como professora aí: eles não me consideram uma professora de português porque nas minhas aulas faltam orações coordenadas, complementos, adjuntos, falta subordinação, faltam objetos. eles não imaginam que o tudo que eles veem nas minhas palavras só existe porque eu amei a literatura primeiro, porque os livros, porque as narrativas, porque a alma humana, porque as histórias. será que um dia eu vou ser professora de português?, me pergunto, enquanto desenho no quadro um gráfico de horas trabalhadas dentro de um dia e em cima dele escrevo mais-valia. 

minha amiga que está fazendo estágio comigo me conta que se sentiu emocionada um dia durante a aula, em que um aluno em uma turma barulhenta e exaustiva me perguntou, no meio da exaustão e do barulho, e da minha cabeça cheia de ruídos, e do meu coração cheio de espinhos, e das minhas mãos cheias de tinta de pincel manchando os dedos, se eles tinham futuro. e eu disse: sim.

o barulho é tanto que eu sequer lembrava desse acontecimento. minha amiga narrou: você disse sim, sem hesitar, eu pensei, o que eu responderia? ali, naquela situação, talvez vocês tenham futuro, mas precisam se esforçar mais, mas você disse apenas: sim, a escola não é toda a vida de vocês, vocês são muito mais do que a escola, isso aqui é só uma parte. ela me conta isso e eu fico feliz e emocionada, como se não tivesse sido eu a dizer essas coisas, como se fosse uma outra pessoa, essa criatura que habita para dentro da sala de aula, cujos pensamentos me perseguem o dia inteiro, mas que é quase como se não fosse eu. dizem que ser professor é exaustivo por (uma lista de mil razões) você ter que tomar tantas decisões por dia. o que dizer. o que fazer. como responder. como brigar. como reclamar. se vai ou não ao banheiro. ou beber água. se é para copiar. se vai valer ponto. o que responder. o que responder. o que responder. o tempo todo, a única preocupação: eu sou adulta, eu posso sofrer; eu não posso fazê-los sofrer, não desse jeito. 

meus melhores-amigos-da-escola (é tão engraçado dizer isso aos trinta anos) estão cansados e pensam em outros futuros. sua vida não é a escola. olho para os meus alunos ao meu redor, conversando comigo, e penso que é uma loucura que eles existam e sejam meus alunos, meus!, essa palavra, e que eu serei para sempre a professora deles, e que para sempre eles serão meus alunos. sorrio para eles, como sorrio para os meus amigos, e sinto amor, sinto tanto amor, já sinto saudades, a saudade previa quando ainda se vive o que é bonito, sua vida não é a escola, a de ninguém é, e ainda assim, na escola está também a vida inteira. 

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