um beijo nos joelhos, ou:

onde eu coloco toda essa lamúria?

estou obcecada com minha nova profissão e faço disso um assunto com todas as pessoas. faço de tudo um assunto com todas as pessoas. anne carson escreveu: o que eu faço com os meus olhos? e eu repito: o que eu faço com os meus olhos? olho para as crianças, que são adolescentes, algumas das crianças têm até mesmo dezoito anos, imagine só, e penso nelas com todo o carinho do mundo. sou professora há tão pouco tempo que não deu tempo ainda de ser derrotista, derrotada ou desinteressada. vivo com o eterno receio de que meu espírito não seja tão inquebrantável assim. os deuses vão me punir por acreditar que eu posso acreditar até o fim. um aluno está maravilhado com eu ter lido senhor dos anéis e saber o que é um rpg de mesa. eu estou maravilhada com o maravilhamento dele, e triste. meu deus, como pode ser assim tão solitária a infância? acabei me deparando com um vídeo meu adolescente. eu com dezesseis anos. eu com a idade dos meus alunos. não adianta: pensei tanto pensar sobre minha adolescência, estava enganada. ou melhor. eu tenho uma porção de registros da minha escrita adolescente. mas não era suficiente. mais uma vez, a vida, sempre, maior do que a literatura. olhei para a adolescente que fui e fiquei sem reação. as palavras, o jeito. sou eu, claro, evidentemente, sou eu, eu sou essa pessoa, e ao mesmo tempo é estranho que eu tenha sido já assim.

fico tentando escrever como forma de tirar algo de dentro de mim. a lamúria, as lamúrias. 

ela me perguntou como aconteciam comigo tantas coisas dignas de nota. com todo mundo, não acontecem coisas dignas de nota? ou tudo é digno de nota? eu sou aquela imagem de uma página inteira grifada a marca-texto: tudo é importante. o que eu faço com esses olhos? olho para você pela última vez tão de perto e penso que queria muito adiar o fim, o fim, sempre o fim, inevitável fim. falo em voz alta, nervosa: o que é gostar de alguém, se não adiar o inevitável? fico serenamente triste, tristemente serena. posso uma vez mais que seja pressionar meu rosto contra o seu? não. lembro de olhos fechados, meus olhos fechados, o desejo nunca realizado de poder ficar mais um pouco, não ir embora, conseguir voltar a trás, desfazer, refazer. posso sentir sua respiração, seu coração, sua pele, seu cheiro, sua voz, suas mãos, seus dentes? não, não, não, não, não, não, não. tudo impossível, três-tantos-impossível. queria morder a língua e calar a boca, mas não queria, não. o que eu faço com essa voz? aprendi a ser solene e séria por essa via, escrevendo na lousa: o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. o narrador também não. converso com um senhor na rua carregando caixas de seriguelas, eu gosto muito de seriguelas, são a cara da casa dos meus avós em sobral, a casa que não existe mais. esse senhor olha para mim com algo que beira a timidez e diz: você é uma moça muito bonita. com vergonha e sem desejo. olho para ele surpresa e espantada, abro a boca e gaguejo um obrigada, começo a rir e e ele também, nos despedimos. você me diz que eu sou bonita e eu balanço a cabeça, negando, não posso ser. você segura meu rosto, firme, olhos firmes diante dos meus temerosos, voz firme repetindo: é, sim. é, sim. 

eu não tenho nenhuma criatividade, mas acho que sei olhar e contar. meu amigo caique me disse que isso bastava, já tem ideia demais no mundo.

o meu pai, um homem triste, tão triste. eu triste diante dele triste. ele olha para o passado e rememora, conta para mim coisas de outros tempos, conta para mim da vida anterior a mim. fui a contagem regressiva para o fim dos seus sonhos. eu olho tanto para trás, ele também. a eterna angústia de não conseguir fazer com que as coisas deixem de estar afiadas entre nós. engulo em seco a certeza de que poderíamos nos dar bem, nos dar tão bem. ele sempre chora no final de orgulho & preconceito, a cena do mr. bennet vendo a alegria da lizzie. o que deu errado? tento ter carinho, e tenho, abro a boca e saem escorpiões. a única pessoa no mundo com quem eu não consigo ser compreensiva na hora imediata, só antes ou depois. o que eu faço com os olhos? olho para os dele, pequenos como os meus. o que a gente fez de errado? poderia ser muito pior, poderia ser muito melhor. em algum lugar das ruínas, corto minhas mãos tentando mais uma vez descobrir o que há no fundo. em algum lugar das ruínas, ralo os joelhos pensando que posso colocar algo no canto certo. em algum lugar das ruínas, lembro que não existe canto certo, só o resto de tudo desfeito e o que faremos a partir daí. 

falo muito de mim mesma, tenho impulso de pedir desculpas, lembro que isso é apenas um blog, lembro que falar de mim mesma é tentar falar de alguma outra coisa também. o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. 

cansei desses olhos, posso trocá-los? agora é tarde, tarde demais. muito medo de mudar e dar muito errado, medo de não mudar e também dar tudo errado. lembro da menina adolescente que eu fui, vejo que não mudei nada e mudei tudo. o que faço com o olhar? olho para os alunos, penso que muitos deles são tão legais. pessoas legais. imagino-os no futuro, torço para que sejam felizes, que entrem na universidade, que se divirtam, que descubram que o mundo é grande. é possível sentir tanto carinho assim por essas pessoas tão terríveis e estressantes, irritantes e barulhentas? elas me cansam, no último horário eu não aguento mais falar, erguer a voz parece um crime contra o meu corpo. tenho que repetir de novo? ficou claro o que eu disse sobre o eu-lírico? vou dar um exemplo. alguns anos, vivi em itabira. silêncio, afirmações. quero sentar, estou cansada. quero ficar calada, cansei de falar. quero fechar um pouco os olhos e dizer: tudo bem, mexam nos seus celulares. uma menina bate na porta e me pede indicações de livros de romance. uma menina me chama e pergunta se eu acredito em deus. uma menina me chama e pergunta qual a minha sexualidade. um menino me chama e diz que eu sou uma das poucas professoras legais. morro de medo de ser uma professora legal: estou fazendo tudo errado, então? vocês não deviam me achar legal. eu queria ser menos sorridente e achar vocês menos engraçados. não, professora, por quê? porque rindo tanto de tudo, como vocês vão me levar a sério quando precisa? e aí vou explicar, anotar coisas no quadro, e silêncio. como pode todo dia, toda aula, todo minuto ser diferente? que profissão é essa? os alunos me perguntam se eu sou professora de português ou de história, e eu digo: uai. de literatura.

estar triste por esses dias me cansa muito. eu também estou feliz e animada. o que eu faço com essa lamúria? acho tudo muito engraçado, não sei qual a verdade. eu sou triste e solar. eu sou feliz e ensimesmada. alguém me disse há um tempo que tudo era verdade. outra vez, abro os braços diante da tal experiência humana. o bom, o ruim. dia desses, perguntei aos meus amigos: o que tem de errado comigo? e respondi aos meus amigos: eu sinto que nada, não parece ter nada de errado comigo. olho para a adolescente do vídeo, lembro que ela achava que tudo, absolutamente tudo estava errado com ela, nela. nos olhos dela. o que eu faço com esses olhos? olho ao meu redor e me sinto cansada, muito cansada, e continuo olhando. 

eu quero reabilitar a feiura



sim, eu continuo no tópico da beleza. ou da aparência. ou qualquer coisa assim.

queria que essa não fosse uma preocupação constante, mas sendo, vou lidar com ela desse jeito que lido com as coisas. alguns posts atrás, falei algo sobre sentir um certo prazer em ser feia e ser desejada. ser desejada sendo feia. é claro, no fundo, toda conversa sobre ser bonito/ser feio é muito permeável. tudo existe em percepções demais: a minha, a do outro, a da sociedade, que se mistura na dos indivíduos. é uma flutuação que é e não é óbvia.

um exercício que faço com constância e que com constância vejo ser feito na internet é o de olhar fotos de um passado (recente, normalmente) seu e pensar: ah, eu não era tão feia! ou que era bonita. ao contrário de agora. e repete. o agora vai ser passado recente, e no novo agora, pensarei a mesma coisa. a versão mais brutal disso, claro, é com fotos da adolescência. olho para a adolescente que fui e quase sinto falta de ar. um grande desejo de poder falar para ela o que eu sei agora. o descompasso temporal dura para sempre. as descobertas só chegam depois. 

quando digo que quero reabilitar a feiura é que eu acho importante se achar bonito. e eu acho importante não se achar nada. e eu acho importante se achar feio e viver. normalmente, eu me sinto assim: feia e muito viva. feia e com tesão. feia e desejada. feia e triste. feia e com raiva. feia e a pessoa mais simpática do mundo. 

eu gosto muito da beleza. fico espantada com as coisas bonitas. e acho que o mundo está cheio de coisas bonitas (e de coisas feias, é claro). amo muito os passarinhos, eles são lindos. penso em outros bichos que existem na terra e que causam nojo ou desgosto (claro, 

[o texto acima data do dia catorze de outubro de 2024. a partir daqui, estamos em fevereiro de 2025]

me parece ridículo gastar tanto neurônio com a aparência. com a minha aparência. me parecia ridículo quando eu tinha quinze anos, mas perdoável. aos trinta anos, é ridículo e imperdoável. especialmente agora que existe mesmo tanto horizonte pela frente. eu sou professora de literatura! caramba! desde o início do ano. só preciso do aval do meu orientador pra poder berrar que terminei a minha dissertação. vou começar o doutorado no final de março. os meus amigos, eu os amo absurdamente. não estou em escassez de beijo na boca. e isso pra falar apenas da minha vidinha de poucos problemas. imagine, se algo sério de fato estivesse acontecendo na minha vida. a aparência é algo tão pífio. pra que se importar tanto? 



assisti recentemente império dos sentidos e achei uma linda história de amor. o tweet do caio hoje me fez pensar: será que eu amaria tanto o amor se fosse incontestavelmente bonita? bonita de nascença? o que eu não quero com esse post: coitadismo. é terrível falar sobre não ser bonito e sentir que os outros estão imaginando que eu quero só ouvir que eu sou bonita. não é isso. eu até me acho bonita, e é quase um prazer culposo, como se a qualquer momento fossem abrir a porta e me flagrar me achando bonita e apontar o dedo e rir ou falar de como estou fazendo errado. isso deveria estar num parêntese, não ser bonita de nascença, ou não ser obviamente bonita. dizer isso me parece um ressentimento com quem tem essa beleza, e deve ser. eu devo ser muito ressentida. a coisa de ver alguém ter algo que você não tem, e nunca vai ter. quase como: eu posso ser bonita, mas não é dado. acho que sou uma pessoa charmosa, divertida, com quem os outros gostam de conversar, e amo muito isso e ser assim. mas absurdamente tudo cai por terra quando me deparo com uma pessoa [B]onita. posso até impressionar quando abro a boca e o coração, mas é isso, é até aí. preciso abrir a boca e o coração pra isso. 

de volta ao império dos sentidos e ser uma linda história de amor e o amor. me perguntei se amaria tanto o amor se etc. quase como se precisasse ser esquisita, ter sido esquisita, continuar um pouquinho esquisita pra poder assistir ao filme e me sentir enternecida, assistir ao filme e pensar com carinho naqueles personagens e na tranquilidade e na falta de susto de estar sob a mira da faca de alguém que se ama. quase como: eu preciso (precisei? preciso?) ser feia para achar isso bonito. preciso ser, ter sido, ser feia para olhar para o amor desse jeito. isso é verdade? isso é só uma tentativa de consolo? é preciso ser ou ter sido feia para olhar o mundo desse jeito, ou não? é preciso ser ou ter sido feia para pensar sobre sexo do jeito que eu penso, ou não? é preciso ser ou ter sido feia, ou às vezes ser feia, às vezes não ser nada, às vezes ser tudo, pra ter esses olhos e esses ouvidos, pra pensar desse jeito, pra querer as coisas desse jeito? ou não? sinto que estou cercada de pessoas bonitas e obviamente bonitas, e aí elas me dão seus relatos de adolescências esquisitas (o que nos une, afinal) e penso: qual é a obviedade da beleza, então? 

na adolescência, ser feia era um fato. não havia espaço para discussão. a única vez em que não fui feia na adolescência foi quando um menino que era conhecido e simpático com meu grupo, mas não do meu grupo e nem da minha sala, que estava na minha frente na fila da secretaria, colocou as mãos no meu rosto e disse "morgana, você é bonita", depois resolveu suas questões escolares e se despediu de mim como se nada tivesse acontecido. não ficamos amigos. ele só me deu esse presente e foi embora. penso muito nele e penso nele toda vez que quero muito elogiar alguém de quem não sou tão próxima, ou não sou próxima de forma alguma. uma janela. 

volto ao tweet de juru que abre essa postagem. não de um jeito tadinha, mas de um jeito brilhante. a moça feia debruçada na janela (vocês já sabem). eu gosto muito de que seja uma moça feia. mesmo. moça feia na janela achando que a banda toca pra ela. poderia ser uma tiração de sarro: moça feia, acha mesmo que a banda estaria tocando logo pra você? que é feia? mas não é isso. não, não. a beleza da banda é tanta que até mesmo a moça feia, que não deve receber prenda alguma, reconhece essa prenda. acho que a mente dela é brilhante.

minha amiga rafaela tem um olhar embelezador. parece algo engraçado de se dizer. ela me acha muito bonita, e eu acredito. quando ela me olha e me diz isso, quando ela me diz isso de longe. sinto que é real e que diante dela eu sou mesmo bonita. enquanto eu escrevo isso, ela acaba de me dizer por mensagem que eu deixo as pessoas mais bonitas do que elas realmente são. achei tão engraçado ter escrito as frases anteriores e receber essa frase vinda dela, que me deixa bonita. rafaela continua falando e diz que eu sou apaixonada pelo mundo, que eu vejo tudo mais bonito, e que as pessoas não são exceção. é engraçado que ela me aponte isso e não ache isso de si mesma, embora esteja sempre me dizendo coisas bonitas, e dizendo que eu mesma sou bonita. minha amiga rafaela é bonita e engraçada, bonita e doidinha, bonita e divertida, obviamente bonita e obviamente esquisita: então é por isso que ela consegue ter esse olhar?

comecei a escrever esse negócio em outubro, continuo escrevendo agora em fevereiro, sinto que estou andando pra trás nessa questão. sinto que tive épocas bem mais tranquilas. sinto que normalmente opero no nível da neutralidade. sinto que, sinto que. imagino com amargura que a aparência é um empecilho para algumas coisas: costumo pensar que se eu fosse [B]onita, isso jamais estaria acontecendo. se eu fosse bonita, não haveria dúvida. se eu fosse bonita, não haveria hesitação. se eu fosse bonita, isso e aquilo. se eu fosse bonita, eu nem precisaria abrir a boca.

acontece que eu gosto de abrir a boca. 

um exercício, ou: devoramos poetas

yes a cliché
and i do not apologize because as i say i was not to blame, i was unshielded 
in the face of existence
and existence depends on beauty


poeta, escuto a voz de lorca modulada pela de cohen modulada pela sua. penso que preciso prestar atenção, prestar toda atenção do mundo. i gave her something pretty, ele-ele-você diz, and i waited until she laughed. momentos depois de outra coisa, eu rio, você ri com a invenção de orfeu debaixo do braço. poeta, eu existo na sua risada. pelo resto da noite, fico impressionada pela confluência das três vozes, como três planetas alinhados, como um eclipse total do sol. tantas vezes na minha vida sou assolada pela dúvida diante dos meus olhos: eu posso ver tudo isso e sair impune? eles me respondem com a precisão que me falta: é claro que não. você nunca sai impune. sinto vontade de perguntar se você sentiu que era importante também, e desisto. perguntar é caçar uma verdade que não precisa muito para ser encontrada. poeta, eu não sirvo para musa. é preciso, novamente, praticar uma inversão. coloco você nessa posição, as palavras são minhas, oriento o olhar dos outros. se pudesse escolher uma só parte de sua anatomia para transformar em soneto, você já sabe, seriam as mãos. olho para elas com o prazer que olharia para um grande felino antes de encontrar o fim em seus dentes, para um raio partindo o céu ao meio, para as cores brilhantes de uma cobra coral, para um imenso galho de árvore prestes a despencar. na imaginação, sempre aceito morrer com imensa docilidade: atropelada porque distraída com a música no fone de ouvido; diante de um animal selvagem; debaixo do seu olhar. tudo me mata, e deliciosamente. coloco minha mão sobre seu braço apenas para ter certeza de que ainda não chegou a hora de ser abocanhada e não tenho certeza alguma. quero antecipar seus passos e seus gestos, quero adivinhar o jeito que suas mãos vão acompanhar sua fala. quando você diz algo, seu corpo inteiro se move junto. quando você canta, quando você dança. digo: você se mexe tão bonito, e você dispensa o elogio com uma piada. suas mãos vão de um lado para o outro, os ombros, as pernas, o mundo todo uma impossível pista de dança. quero entrar na dança, não consigo: palavras que morrem atrás dos dentes, passos que ficam congelados no tempo. você faz do meu corpo a imitação de um instrumento musical: cordas e teclas nos meus braços e ombros, o ritmo de todas as músicas que escutamos transformado em tato, e eu gosto. poeta, coloca seus dedos na minha boca, seu dente na minha ferida, sua língua misturada a minha. sinto desejo de consumir, abocanhar, devorar. você resolve minha vontade de me tornar monstro. conseguiria incendiar tudo apenas com a chama da minha ideia. sinto um prazer imenso quando você me ordena: lê. quando você diz: eu quero que você leia. tanto prazer com as palavras. tanto prazer com o caminho que você me revela tortuoso pelas suas palavras, que até a angústia se torna doméstica, ronronando no meu peito. tanto prazer com as suas palavras e prazer com as minhas quando você as escuta, distraidamente atento. olho para você e é como estar diante: do mar, duma cidade, duma pedra, duma refeição, dum pássaro, dum polvo, dum besouro, dum gato. duma música. é como estar diante de uma música. o amor, a pergunta: como posso engolir o meu amante?, e rio, poeta, porque sei que você jamais seria engolido por mim, apesar do meu desejo. sou eu que estou entre os seus dentes – e isso quase não tem importância alguma. peço que você beije os meus joelhos e imagino o gesto como uma espécie de bênção: assim você também pode me ensinar a partir. 



a moça feia debruçada na janela, achando que a banda tocava pra ela

eu gosto de olhar as coisas.

com lágrimas nos olhos, olho três dos meus amigos quase cinco da manhã dançando ao som de don't stop me now numa pista muito esvaziada. assim que a música se inicia, um deles me sussurra: vamos embora, chega. um estranho intervém: não, não, você vai dançar. como dizer não? ele vai dançar. fico sentada, meus pés doem terrivelmente após tantas horas em pé. dançar é bom. olho para os três e eles cantam e pulam e rodam, eles se mexem e eu olho braços e pernas e expressões faciais, e meus olhos se enchem de lágrimas porque. por quê? sinto muito amor. estou tão cansada, e rouca, e suada. por um instante, me parece que eu deveria estar lá, rodopiando junto, mãos dadas. mas não. sou egocêntrica? a moça feia debruçada na janela. a banda não está tocando para mim, mas eu acho que está. eles estão dançando porque estão dançando, isso não tem nada a ver comigo, mas tem, eu olho para eles e sinto que estão todos tão vivos, tão vivos e comigo, eles estão comigo, somos nós, eles e eu, juntos. eles dançam, eu olho. eles existem, eu olho. eles se mexem, rindo, divertidos, e eu olho, extasiada, apaixonada, encantada. meu cérebro fica repetindo: eu amo vocês, eu amo vocês, eu amo vocês. 

dentro de um carro, um casal de amigos me convida a ser a professora de direção. os dois têm carteira, é tudo recente, dirigir dá um medo danado. fico sentada no banco do passageiro, tranquila, verdadeiramente tranquila. não me assusta estar no carro com eles, embora ambos estejam tão nervosos. alguns errinhos são cometidos, mas a morrer um carro é bem mais tranquilo do que morrer: basta dar a partida outra vez. curvas meio rápidas demais, entradas meio devagar demais. digo: está tudo bem, é normal, você está começando. um monte de coisinhas prontas, mas as sinto de verdade. minha amiga vai para o volante, dizendo que só dirige em estacionamentos. tiro uma porção de fotos dela, ela está tão linda, usando oclinhos escuros, blusinha listrada. eles dirigem e eu coloco a mão do lado de fora da janela, sentindo a resistência do vento. é tão bom, o ar se torna um bloco, sólido, contra a velocidade, minha mão que cede aos seus movimentos. vamos para outro lugar, meu amigo diz: um pica-pau. desço do carro exasperada e lenta para fotografá-lo. pica-paus sempre parecem pássaros de brinquedo, de pelúcia. fico tirando fotos e os dois aguardam pacientemente dentro do carro. é tão bom poder se distrair em companhia, olhar as coisas em companhia. de volta ao carro, no caminho, esmiúço para os dois alguns dos meus sentimentos, e eles escutam e respondem sob a tensão do trânsito. me sinto muito amada. é possível isso? estou trapaceando em algo? eu os amo, eu sou amada. 

no caminho de volta para casa, minha amiga me diz que não sabe o que ainda oferece para a nossa amizade, depois de tantos anos, com tanta gente nova tendo pipocado em minha vida. a frase me soa compreensível e absurda. ela é ela. penso em todas as tardes e noites passadas na companhia uma da outra. assistindo filmes juntas no sofá da casa que ela morava, mãos dadas nos momentos de tensão. piqueniques em parques. uma obsessão alimentar depois da outra. ela mexe as mãos de maneira tão bonita. seus dedos são finos, ossinhos de pássaro. constantemente sou lembrada de uma tarde em um parque, eu ensandecida segurando meu celular como se fosse uma arma, mostrando para ela algo que me parecia, que era, um crime. ela me vê com a faca na mão e apresenta uma solução que a um só tempo me vinga e me salva. posso soltar a arma, posso me acalmar de novo. o que é um amiga? alguém que você escuta. alguém que escuta você. os mesmos assuntos, e os novos, repetidos, reiterados, apresentados, por anos a fio. uma amiga, um museu da sua história, uma exposição de quadros novos. ela e seus ossos de passarinho, leves como o ar, pronta para partir mais uma vez. penso na saudade que vai ficar comigo e na saudade que ela vai levar com ela. um sentimento como um daqueles cordões que dividimos ao meio, cada uma com uma parte. o que ela oferece? empresto meu olhos, que pensam sempre que a beleza do mundo está aí disponível para eles: tudo. 

olhar as coisas sempre foi um prazer. uma infância gasta de olhos na porosidade do asfalto, nas rachaduras dos troncos das árvores. adolescente, gastei os olhos nas bocas que jamais poderia beijar, nas mãos dos professores que um dia gostaria de imitar, nas lombadas dos livros nas livrarias de shopping. adulta, a visão ainda não cansou: olhe aqui, essa folha, esse pássaro, essa placa, essa pessoa. vivendo uma repetição de tudo, sempre. gostava de olhar, ainda gosto. tenho apreço pelos meus olhos: pequenos e feios e ainda assim é por eles que tanta beleza passa. quanta generosidade é preciso para que você dê o que te falta ao outro? meus queridos olhinhos: não importa como veem ou não veem vocês, importa o que vocês veem. o mundo não é feito para mim. tudo estava antes, tudo estará depois. mas enquanto eu estou aqui, distorço a verdade e torno tudo meu, tomo tudo: eu quero ver. quero ser boa de olhos. deixa eu olhar para eles, para essas pessoas que eu amo. deixa eu olhar para as coisas. quero me encantar diante de um pássaro, diante de um calango, diante de um folha que é tão enorme e tão verde. 

um dia vejo pedra e é pedra mesmo, e basta que seja. pedra, água, sol, chuva. só o que as coisas são, sem metáforas nem alegorias, e já é tanto. pensar no detalhe de tudo, na loucura que é poder colocar as mãos: nos braços de quem eu amo, numa laranja para ser cortada. tudo existe muito. 

diante da professora que eu amo, explico para ela uma situação e ela escuta, suas lindas mãozinhas pequenas sobre os lábios enquanto sussurra "gente...". ela é pequenininha, com mãos de dedinhos rechonchudos, curtinhos. outra vez, sentada no corredor do lado de fora de sua aula, vejo projetada na parede a sua sombra segurando um livro nas mãos. sorrio, tiro fotos da sombra. eu a amo de um jeito que até me assusta pelo tamanho e força, a vontade de estar perto, de saber como e o que ela pensa. uma admiração que ultrapassou os limites da primeira relação que estabelecemos, ainda que eu me sinta aluna de tudo, ela já me trata como outra professora. ela termina de me escutar, toma um gole de suco e fala: você tem o coração muito aberto. congelo meu sorriso. eu tenho? eu tenho. mas quem é que mede a abertura de um coração? como eu sei, como ela sabe que esse coração é aberto assim? ela prossegue: eu não sou assim, abro apenas frestinhas. rio e quero dizer que escancarei a porta, ou bati tanto com tanta força que ela teve que me aceitar na sua vida, mas não quero interrompê-la. ela diz: eu não daria conta de ser assim. eu dou conta? eu só sou assim. é mérito ou demérito ou nada, neutro, ser desse jeito? um coração tão aberto é problema e é solução na mesma medida. ela é minha professora, então só me resta dizer: me ensina a ser diferente. com um sorriso meio envergonhado, meio falseado. ela me olha e diz, categórica: Não.

enquanto tudo passa rápido na estrada

parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudess...