parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudessem fotografar. um monte de pipas expostas na beira da estrada. as árvores retorcidas. campos de nada. cheiro de queimado e fuligem na terra por muito, muito tempo. um cachorro morto. um pássaro de rabo bifurcado. um ciclista. mercado cebolão. devia ter anotado tudo, a única nota que tomei foi a mais óbvia de todas, olhando o mato passar diante dos meus olhos: ah, é claro. sou eu quem está passando. as árvores se mexem de outras maneiras. sou eu que estou me movendo. pensei em tantas palavras o dia inteiro. por que não escrevi nenhuma? numa vã esperança de que fosse possível remontá-las depois. minha cabeça desfeita pela rapidez de tudo. lembro de pensar: é assim que se abre uma janela? penso no gesto, quadradinho desenhado no ar, você abriu uma janela. sonhei, depois, com uma janela. décimo primeiro andar, era noite, eu olhava por ela, e a floresta entrava pela janela, pela varanda, noite adentro a floresta na sala, até que uma onda do mar quebrava ali, na janela, décimo primeiro andar, uma onda, molhando as árvores de folhas bem escuras, grandes, uma floresta do mundo antediluviano, e o mar, e a água salgada se acumulava nos meus pés. é assim que se abre uma janela? para que entre floresta e mar, ar e água salgada. meu pai, dirigindo na volta, diz para a minha mãe: bota a mão aqui. ela coloca a mão no joelho dele e faz um carinho. ele a olha, risonho, exasperado, exclama: é pra tu segurar o volante, mulher! rio à beça disso. registro duplamente o fato. meus pais são idosos, um dia desses minha mãe disse que achava que ainda viveria quinze anos bem. pensei, e penso: não, não, quinze anos é muito pouco. um-salto-de-peixe. então eles são velhos, e eu olho para os dois. eu olho para os dois. eu olho de novo. fico apavorada com o que ando sentido. tenho vontade de dizer. tenho vontade de perguntar. tenho vontade de confirmar. fui indagada: o que você quer saber? de novo, quero rir, rir muito. o que eu quero saber? o que eu quero saber. tudo. pensamento, sentimento, ideia. as coisas vão se movendo rapidamente diante dos meus olhos. vou calando um monte de palavras que querem e não querem ser ditas. palavras que morrem na barreira dos dentes. ou: i want to say something but shame prevents me. espalmo as mãos vazias, isso é um presente? um presente que não pode, não deve ser recebido, é um presente? sinto vontade de dormir. no balanço do ônibus, fecho os olhos com a cabeça no vidro da janela e a trepidação faz com que os sonhos todos tremam também. posso contar um segredo? a água do mar nos meus pés, a floresta encharcada. há dois anos atrás, o homem que eu amava me chamou de histérica. ou melhor, com alguma impaciência, sussurrou para mim: a definição da histeria é você querer uma coisa sem pedir. essa não é a definição da histeria. talvez essa não seja a exata frase. importa? o que importa? a água do mar nos pés. o homem que eu amava e que já não me amava, e que cansado do meu choro e do meu grito, dizia que a definição de histeria era o que ele achava que eu estava fazendo. eu estava pedindo, eu tenho certeza de que estava pedindo. uma floresta inteira entre pelo décimo primeiro andar. migalhas dormidas do teu pão. observar o olhar do amante se transformar no olhar de um estranho. a definição de histeria é. dois anos atrás, meu cabelo caindo, o sono todo picotado por lágrimas, a pedra no fundo do estômago, o punhal fincado nos pulmões. sendo consumida pelo incêndio dos outros. posso te contar um segredo? nos sonhos do ano seguinte ao dia em que o homem que eu amava disse a definição de histeria é (você), eu sempre perguntava: por quê? por-que-você-fez-isso-comigo. como-você-pode. a floresta entra pela janela. olho para a água do mar cobrindo meus pés. mãos estendidas, nada, nada nelas, além de tudo o que eu gostaria de poder oferecer. o incêndio agora é meu. cheiro de fuligem na estrada. fecho os olhos para preservar as flores e a espuma das ondas. é assim que se abre uma janela?
primeiro eu quero falar de amor
na ocasião da mudança do meu melhor amigo de infância para outro país
escrevi algo muito parecido com o que desejo escrever hoje no ano passado.
no ano passado, fiz trinta anos. pausa: li um texto de janeiro de dois mil e doze, pouco menos de um mês para eu me mudar para brasília, e o texto é para o meu melhor amigo de infância e o tempo inteiro que eu falo com ele, eu digo tu. tu tinha dito. tu diz que é. tu é meu melhor amigo. penso agora, longe dos dezessete anos, longe de fortaleza: quanta coisa a gente pode perder pelo caminho sem nem sentir. todos os meus textos são cheios de você.
no ano passado, fiz trinta anos e também um texto para ti, que faria trinta anos exatos seis meses antes de mim. fico pensando que só quero repetir tudo aquilo que já escrevi. repetindo as palavras:
eu tenho vontade de contar. eu vivo contando. eu repito a cada oportunidade. eu torço para que compreendam que não é uma saudade da adolescência ou da escola ou de qualquer coisa do tipo. digo, claro que é. no limite, é isso. mas não é exatamente assim. é que você tinha que ter estado lá para entender. eu conto essa história uma vez e mais outra e outra ainda. sempre contando. era todo o amor do mundo. você tinha que ter estado lá. tenho vontade de me corrigir. é saudade? se eu não quero voltar no tempo, é saudade ainda? me corrijo de novo. claro que é. não é mandatório da saudade o desejo de retorno. certo? eu gosto da caixa do tempo. isso está ali. intocado. aconteceu e é impossível repetir. eu imagino que eu sinta isso dessa forma porque eu fui embora. eu fui embora, é um corte. vocês continuaram, o cotidiano. não foi assim para mim. então deve ser por isso que é assim pra mim. tento me justificar. tento, à força, com marretadas, pregos, parafusos, furadeiras, canetas e lápis, reformar meu coração: você não pode ser um museu. por que eu já me achava um museu com vinte anos? vontade de rir na minha cara. por que eu já tinha saudade de tudo com quinze anos? você é maluca? tento me tornar apresentável. sorrio com sinceridade: eu também amo aqui. amo quem está aqui agora. alguém ainda quer ouvir essas coisas? acho que não.
e:
vocês ainda me aguentam ouvir falar? se vocês conseguirem, ainda, eu posso continuar falando.
e:
alguém ainda suporta ouvir essas mesmas coisas, de novo e de novo?
e:
eu espero que dê pra entender. ainda dá? se eu jogar todas essas palavras do jeito que sempre fiz — não é engraçado, meu deus, como pode eu continuar sendo uma repetição da figurinha que era, talvez só ligeiramente mais amável, menos terrível, menos irascível, mas ainda a mesma coisa, as palavras, sempre as palavras, tudo se resumindo a isso — você ainda vai entender? não sei se um dia consigo parar com isso. às vezes, quero muito parar. mas isso é mentira. eu gosto das coisas como elas são agora. mas eu gosto de ter vivido o amor como vivi. como vivemos. daqui a mais quinze anos, vou sorrir dizendo: lembra na escola? lembra nas estufas? lembra dos telefonemas? lágrimas escorrendo dos meus olhos, eu vou dizer: uma vez, no meio termo, você com dezessete e eu com dezesseis, nós nos abraçamos na saída do shopping, longamente, e eu pensei: esse é o abraço mais importante da minha vida.
volto. falo tanto de ser um disco arranhado. repetindo e repetindo as mesmas coisas, vinte palavras girando ao redor da lua. quando escrevi esse texto para [ti], escrevi sem saber que seria professora; sem saber que estaria de novo na escola, escrevi para os [t]eus trinta anos, não para a [t]ua partida. tu vai para outro país! no meu texto de dezessete anos:
– principalmente agora que eu vou embora, tu precisa de alguém que esteja perto, eu acho.
e:
Tem uma parte em que a Lyra fala algo como “e se nós encontrarmos alguém que gostamos muito, vamos ser felizes com essa pessoa e não ficar pensando como preferíamos estar um com o outro”, e é isso que significa pra mim. Que a gente vai se separar, mas a gente vai se juntar. Que a gente vai encontrar outras pessoas, que um dia talvez nós fiquemos no “oi, tudo bem?” e que exista outro alguém que saiba dos nossos segredos e das nossas vidas, mas que um dia nós existimos e significamos alguma coisa um pro outro. Alguma coisa bem grande.
olha só essas letras maiúsculas. que carta mais engraçada. olha ali aquela frase: agora que eu vou embora. eu fui embora faz tanto tempo! e agora você vai embora. agora tu vai embora. agora meu melhor amigo de infância vai embora, mas isso faz alguma diferença, se eu já fui embora, se ele mesmo já foi embora do ceará para são paulo, e não para brasília? faz alguma diferença se a distância é de quilômetros por terra ou por mar? faz diferença se a distância é de horário, temperatura, clima, idioma, culinária, árvores, pássaros? se já havia distância, muda o sabor da distância?
aos nove anos de idade, prestes a completar dez no final daquele ano, eu conheci o meu melhor amigo de infância. falar algo assim soa um pouco insano. vontade de perguntar para os meus atuais melhores amigos da escola: vocês têm amigos de infância? pessoas com quem vocês aprenderam a amar?
tu não acha isso doido, bonito? tu me disse: a gente era como uma família, quando falei sobre termos nos traumatizado mutuamente no período da adolescência. como uma família: amor, trauma. me pergunto mais uma vez: a quem interessa qualquer uma dessas coisas, além de mim? se eu falar mais uma vez disso, alguém ainda vai aguentar dançar comigo? todas as lembranças que tu já sabe de cor: estufas, mp3 vermelho, fanfics em cadernos, selinhos durante o festival, o primeiro beijo-de-língua com o coração acelerado no quarto de outro dos nossos melhores amigos (de infância, de adolescência, hoje tudo parece uma coisa só).
essa semana, a analista me disse que minha barreira entre amor romântico, paixão e amizade é muito tênue. não gosto de socializar as falas da analista. nem sei se é a minha barreira, ou só a barreira. penso em quando olhar para ti era sentir o profundo desejo de ser gostada de volta. como parecia impossível que um dia não fosse assim. que um dia eu não estivesse apaixonada. que engraçado, como é engraçado pensar nisso. hoje é quase um delírio febril: eu fui mesmo tão apaixonada assim? apaixonada, tão apaixonada pelo meu melhor amigo da escola, com suas bonitas sobrancelhas (lembro de ti espantado que as minhas eram macias e as suas, ásperas), seus olhos castanhos, mastigando as tampas das canetas, os puxadores dos zíperes. lembro das broncas que levava de outros dos nossos amigos, os conselhos de superação. lembro daquela troca de sms!, eu já em brasília, decidindo que deveríamos nos afastar e do seu email de vinte e poucos dias depois, desesperado com esse afastamento. lembro da alegria do reencontro.
pensar no meu melhor amigo de infância é também pensar nos meus melhores amigos desse tempo, meus melhores amigos de fortaleza, meus grandes amigos, meus amigos. toda vez que eu penso que faço parte de pessoas ligeiramente esquisitas da internet (eu não sou esquisita o suficiente), mas também carrego comigo meus amigos da escola, concluo: que bom que é achar as outras pessoas com suas esquisitices da época (tudo tão normal! mangás, fanfics, joguinhos, obsessões por narrativas). o que tu disse? que éramos como família? eu aprendi a amar contigo. eu aprendi a amar com vocês.
eu aprendi a amar com vocês.
durante muito tempo, foi difícil fazer amizades em brasília. eu era tímida e ninguém era bom o bastante: eu tinha tido o melhor da vida inteira, da vida inteira até os dezessete anos. agora eu amo tantas pessoas! eu amo até pessoas novas. eu amo até novos melhores amigos da escola, do outro lado da sala. eu amo até, eu amo até. aquele rapaz, moço, homem, que era meu melhor amigo na infância, na adolescência, vai se mudar para outro país. isso altera profundamente tudo na minha vida, sem que nada perto de mim se mova. tu já está longe. e vai para mais longe. e aí, do nosso grupinho, temos pessoas em fortaleza, em natal, em são paulo, em brasília, em barcelona. o mundo é sempre gente se espalhando.
eu quero dizer: boa viagem. e quero dizer: até breve. e: boa estadia, boa vida, boa morada, bons sonhos, bons beijos, paisagens, sons de pássaros, chuva na rua, chaves esquecidas, bons sonhos, boas saudades de casa, daqui, de fortaleza, boa construção de casa, de lar, bons dias, bons alimentos, tudo, sempre tudo, tudo, tudo, do melhor, do melhor possível. eu vou sentir sempre saudade, e eu sempre vou ser feliz: porque tu me ensinou a amar.
doce, amargo
caminho pela cidade com passos amargurados e os pulmões em chamas. nem é o ar mais seco que já tentei respirar. cada passada um esforço tremendo. bate um vento forte e devastador. bate um sol forte e devastador. de noite, no deserto, fará frio. meu corpo não pode nem suar. penso em um desejo interrompido porque sou tola, penso em um desejo continuado porque fui tola. a boca engole o ar ressecado. a boca: ressecada. encontro ossos nas ruas, coloco-os nos bolsos. encontro folhas mortas, coloco-as nos bolsos. às vezes, acho horrível a colocação pronominal. coloco eles, coloco elas, não soa melhor? canso de ter que inventar palavras, também não consigo mais inventar palavras (inventá-las, no entanto, soa mais bonito do que inventar elas). minha voz sobe arranhando minha garganta, não aguento mais falar. os sons me deixam tonta, não aguento mais ouvir. ponho um seixo na boca e assim torço para selar meu silêncio. vontade de desaparecer, vontade de não ter mais que responder a nada, vontade de dormir dias a fio, de ir embora. com os calcanhares feridos, concluo que esse caminho já não se desvela debaixo dos meus pés. a angústia rói as bordas das minhas costelas. constantemente rio da minha própria cara, todo esse exagero, como se eu não tivesse sorrido, rido, cantarolado. como se, como se. sinto que perdi qualquer coisa irrecuperável. não aguento mais lições de reconstrução, os pedaços não encaixam mais. depois, vão tentar me explicar, mais uma fastidiosa vez, que os pedaços não vão mesmo mais encaixar, que eu posso fazer algo bonito desse desalinho, que bom mesmo não é reconstruir nada, mas construir o novo com fios de ouro. sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde. ossos e folhas mortas, eu também um sorriso morto de palavras mortas. perto de mim e muito distante, canta um pássaro.
mercúrio ardente
você está completando trinta anos e em breve eu começo a viagem para perto de você. chego no final da data, mas chego. em dois mil e catorze, cheguei um dia depois do seu aniversário de dezenove anos. no dia do aniversário, você nadou até um barco muito longe no mar. fiquei impressionada com isso à época, fico impressionada até agora. você é miudinha, em tamanho físico, embora imensa em todo o resto. penso nos seus braços magros vencendo as ondas. penso no cansaço e na glória de tudo. eu amo o mar, e temo. não consigo me afastar muito da costa, da areia, quando os pés começam a flutuar demais já sou tomada por um grande pânico. por conta de todas as histórias do litoral esburacado de fortaleza, talvez. estar em segurança e um segundo depois, não estar mais. talvez não seja nada disso, nada além de medo e receio dessa imensidão misteriosa, alerta, calma, violenta e, acima de tudo, indiferente. eu carrego o mar no nome e no sol, você é toda feita de ar e chuva, mutável, quem sabe por isso menos medrosa, ou já aprendeu desde muito, muito pequena que não adiantava o medo. penso em você completando dezenove anos e cruzando as ondas. penso em como deve ter sido o caminho de volta, o ardor nos braços ao enfim chegar na areia. penso que já faz onze anos disso, e que nos encontramos em outros lugares depois, todos mundo longe do mar. você está completando trinta anos. como era a conta? você me conheceu um ano antes de eu te conhecer, então você está há quinze anos comigo? e eu há catorze com você. conta injusta, queria ter conhecido antes, quinze anos, dezesseis, dezessete, quem sabe. ainda assim, todos esses anos, uma carregando a outra no coração e na ideia. olha só, a gente cresceu e não é mais adolescente. isso já é verdade há tanto tempo, e agora parece ainda mais verdade, os trinta anos. você, com trinta anos. ó pra isso! penso nos seus olhinhos, sempre seus olhinhos lindos, sanpaku? falávamos dos olhos de tragédia, os três brancos, olhos que anunciavam alguma dor. e também seus olhinhos de ressaca, capitu de mãos dadas com maria serafina. sem tragédias e sem tragadas, penso nos seus olhinhos com amor e com carinho, eles lindos, você linda, a sua voz, o jeito que suas mãos mexem no cabelo enquanto você me conta algo. estar ficando maluca e não estar ficando maluca. ser e não ser maluca. sinto sua falta o tempo todo e te amo o tempo todo, amo tanto que basta pensar um pouco no amor que meus olhinhos pequenos e sem dramas adicionais se enchem de lágrimas. eu amo você, eu amo você. tenho vontade de ser um lugar seguro, um beijo nos joelhos, um abraço forte, um refúgio, um respiro, um carinho. você está completando trinta anos hoje, trinta anos! imagine só. continuaremos andando juntinhas, coalinhas dormindo nas costas uma da outra. sempre ligadas, ainda que distantes. ansiosa pelos próximos dez, pelos próximos vinte, trinta anos, e conhecer você, e reconhecer você, e estar sempre na expectativa real de que vou te ver ainda mais uma vez. feliz aniversário, minha amor, o que mais eu poderia fazer se não uma viagem até você e um post de blog? as coisas que são tão nós. os caminhos e as palavras, que começam e a gente nem sabe pra onde vão, mas sabemos algumas das coisas que vamos encontrar. seus olhinhos nos meus e suas mãos nas minhas. te amo para sempre, para sempre.
o esforço de dizer
a cã
quatro meses atrás, a essa hora, eu estava indo na veterinária pela primeira vez na noite.
mas não é isso que importa. o que importa. o que importa? dia desses, eu tive um momento tão óbvio na análise que só restou uma risada compartilhada entre mim e a analista. falei que antes de ir ao consultório, tinha tirado um cochilo em casa e sonhado com a cã. falei que não sabia o motivo. falei que no dia anterior, tinha sentido muita saudade dela. falei que naquela manhã, tinha lido a morte da baleia para os meus alunos. foi aí que fiz "ah!", e aí as risadas todas. quanta obviedade. a morte da baleia. o sonho. você, criaturinha.
você fez a viagem até nossa casa em uma caixa de sapato. presente de um amigo do meu pai, da época da faculdade, da ninhada dos seus dois cachorros. fomos buscar você na casa dele. coisa minúscula. menor do que uma chinela tamanho 37. seu nome ia ser lilith, mas um final de semana antes eu estava no cinema com meus amigos e passou o trailer de um filme de terror sobre uma criança possuída por lilith. eu sempre fui muito medrosa e atenta aos presságios. melhor algo mais banal, comum, corriqueiro: lola. um nome muito 2010. era 2010. isso importa? você na caixinha de sapato, no meu colo. você na imensa caixa em que o rapaz do crematório te colocou, catorze anos depois.
parece loucura se eu digo que quando fecho os olhos, consigo sentir na palma da mão a textura do seu pelo? contando do sonho que tive, lacrimejando. sentir nos braços o seu peso. não quero nunca acordar. perguntas: eu brinquei o suficiente? será? será que dei atenção suficiente? será que as coceiras e as cócegas foram suficientes? para você. para mim, não foram. para mim, podiam durar ainda muito, muito, muito tempo.
às vezes eu penso que daqui a quase quinze anos, vai chegar o dia em que vou pensar: agora eu vivi sem você o tempo equivalente de viver com você. o que é um pensamento cômico, já que eu tinha vivido quinze anos antes da sua chegada. eu já vivi o tempo equivalente sem você. só não lembro como ele era.
dos quinze aos trinta anos, eu vivi uma rotina irrecuperável. a cã. ela. animalzinha. ver um bichinho dormindo e pensar em como ama esse bichinho que está dormindo. olhar para a porta e ela estar lá. chegar em casa e ter sua recepção. ver um bichinho envelhecer e continuar com carinha de bebê. mesmo cego. mesmo ficando sem dentes. dedicar amor a um bichinho. um bichinho dedicar amor a você. eu sempre falo como fico feliz que os animais brincam, você e eu, animais que brincam. como eu não vou morrer de saudade? eu vivia tão preocupada com o dia da sua morte. eu chorava só de imaginar, muito menos do que o que choro agora. agora. agora mesmo, enquanto escrevo isso, e choro, choro, choro, pensando que é impossível explicar-entender a não ser que você também tenha um bichinho. não que eu não acredite na empatia das pessoas que nunca tiveram um. é que você tem que saber o que é a pura presença física de um animal sem palavras. como a casa existe muito menos para você do que para ele. como a casa existe ao redor dele. o que ele precisa para viver, o que ele não pode alcançar, o que ele tem que fazer. imagine a presença. imagine a sua casa, a sua rotina, a sua vida. a comunicação por uma via que não a da nossa linguagem, mas uma outra. imagine tudo isso, e todos os anos disso, e então o fim disso. pronto. acabou. essa vida que você sempre soube que seria curta, acabou.
a casa sem a cã. lembro de voltar da clínica veterinária, depois do seu corpinho ter sido recolhido, entrar no apartamento e ver sua caminha no chão da sala. a casa, a sua casa. as suas coisas. as suas coisas sem você e a sua casa sem você. meu deus do céu, como é possível você não estar aqui?
um dia, chegando de madrugada em casa, a cachorrinha da vizinha latiu e eu parei com a chave na porta e o coração acelerado porque ouvi direitinho o seu latido e por um segundo bêbado e sonolento, fez todo sentido imaginar que era você latindo. nos primeiros dias após a sua morte, meu corpo em alerta na hora do seu passeio, um cutucão no cérebro repetindo que eu não estava fazendo algo que devia fazer. eu estou reclamando muito? ela morreu com quase quinze anos. o que mais eu poderia querer? cinco anos, pelo menos, ou três, ou dois, ou um dia a mais, talvez? um dia, uma semana a mais? só mais um pouquinho? você, tão pequenininha. só uma vezinha mais.
não tem nada aqui além de saudade. penso: amá-la foi o maior privilégio de todos. seu corpinho encostado ao meu. as numerosas lambidas. os arranhões e os latidos. criaturinha maluca, voluntariosa, amável. minha criaturinha nesse mundo. e eu, a sua.
os meus guris
quando comecei esse blog, escrevia como forma de fugir da escrita da dissertação.
parece uma loucura que eu tenha defendido a dissertação. caramba. quantas vezes ela apareceu aqui nas postagens como algo impossível de acabar, de escrever, de fazer? e agora está feita, defendida e lida por uma banca generosíssima que recomendou que eu procurasse algum lugar para publicá-la. daqui a poucos dias, começam as minhas aulas do doutorado e a angústia de um novo texto a ser escrito. por agora, estou escrevendo no blog como forma de fugir de algo muito mais complicado do que uma dissertação ou uma tese: o planejamento de uma aula.
não preciso, felizmente, entregar um plano de aula completo, todinho por escrito, para a escola. acho que isso me geraria um pânico tremendo. é meu primeiro ano sendo professora, a primeira vez que estou com as turmas desde o princípio. então toda semana preciso descobrir como vou passar o conteúdo e que conteúdo quero passar. toda semana, todo dia, toda hora estou descobrindo ou tentando descobrir a professora que eu sou, ou que quero me tornar. todos os dias me pergunto: sou a vergonha da profissão? estou fazendo isso do jeito certo? é para ser assim? sinto vontade de pedir licença aos outros professores, com mais tempo, para assistir suas aulas. as aulas que estão frescas na minha memória são as aulas da universidade. queria me lembrar das aulas da escola, das aulas de português da escola. o que dizia o fábio coelho? o que dizia a fábia? a ceiça? o que me diziam meus professores, como eles preenchiam aquele tempo? falatório sem fim? atividades? outras informações?
meu maior problema como professora é que eu adoro conversar com os alunos. parece engraçado anunciar isso como um problema. o que eu devo a eles? qual o equilíbrio? quero ouvi-los, quero que eles aprendam. o que eles vão aprender? escrevo no quadro: cantigas de escárnio, cantigas de maldizer. volto-me aos meus alunos, em todas as salas, seis vezes repetindo a mesma pergunta: qual que é o nome de um tipo de música que se faz para falar mal de alguém, um outro cantor, normalmente? e em todas as salas, depois de uns instantes de pensamento, alguém brada: ah! uma diss! e eu sorrio, pegando os trovadores por uma mão e o rappers por outra. sim, sim, balançando a cabeça, uma diss.
o que eles vão aprender? encho o quadro de informações que logo estarão esquecidas, alguns garotos puxam suas cadeiras para perto da minha mesa e copiam enquanto conversam comigo. ao final, um deles diz que é muito melhor copiar um quadro imenso enquanto se conversa com a professora, e fico imensamente alegre. ah, i., é muito melhor ser professora enquanto se conversa com os alunos. qual que é o nosso equilíbrio? ele existe? penso nas coisas que eu queria que eles fizessem: escrevessem mais, escrevessem melhor. lessem mais. o que eu estou fazendo para isso? estou fazendo o suficiente? falar dos livros, mostrá-los, ler passagens em aula: isso basta? pedir para que eles escrevam, ouvir os resmungos de preguiça e insatisfação, insistir. isso basta?
conheço meus alunos há um mês e seis dias e sinto que já os amo profundamente. como é possível? criaturas falantes e esquisitas, barulhos quase o tempo todo, resmungos, revirar de olhos. os alunos que eu jamais seria amiga caso fosse também aluna moram no meu coração. os alunos que eu obviamente seria amiga caso fosse aluna, também. até mesmo os mais difíceis. até aquele que de cara eu não gostei, o primeiro que eu aprendi o nome, com seu semblante de profundo tédio, nenhuma vontade de fazer nada que eu pedia, nem mesmo de fingir fazer. diante dele, todas as vezes eu pensando que não podia demonstrar, que ele não podia saber do meu desgosto. eu tenho trinta anos, ele tem quinze, eu sou responsável por como ajo sobre meus sentimentos, ele ainda está aprendendo essas coisas todas. depois de uma breve bronca, dada até com alguma tentativa de humor, na última aula, ele me olha com um sorriso enorme, malandro, sorriso de lobo e diz: você não gosta de mim, professora, mas eu gosto de você. como não amá-lo de imediato, amar sua perspicácia, sua leitura de mundo, seu sorriso ao enunciar essa frase que por qualquer outra boca poderia sair com imensa angústia?
na sala de aula, muitas vezes, me sento no meio deles, ocupo uma carteira. d. coloca um chocolate sobre minha perna e sai. depois eu pergunto: ué, é pra mim? e ele confirma. meu primeiro chocolate. l. e m., em dias diferentes, elogiam minhas roupas, falam que eu sou estilosa. l.s., umas semanas atrás, me dizendo que quando crescesse, queria ser que nem eu. por quê? por eu ser uma adulta com personalidade. lembro de ter quinze anos e morrer de medo de, aos trinta, não amar mais o álvares de azevedo. de olhar para os adultos como pessoas entediantes. ah, o descompasso do tempo. p., g. e k. discutem jujutsu kaisen enquanto copiam a matéria. não consigo parar de sorrir durante a conversa. eles sentam nas carteiras bem na minha frente. "vocês são muito ignorantes," p. diz, erguendo a palma da mão, "vocês não leram o mangá". essa frase me faz sorrir o dia inteiro. m. fala que mataria todo mundo da sala, menos eu. nervosamente, digo: muito obrigada, m., mas por favor, não mate ninguém, nunca. f. puxa uma cadeira para se sentar ao meu lado e conversar comigo e d. sobre o pequeno trecho do documentário d'o povo brasileiro que vimos. eles falam coisas sobre o mundo e eu escuto, fascinada. sentada do lado dos alunos da sala que sou conselheira, a. me pede conselhos amorosos. e. e g. me perguntam, outra sala, se eles são minha turma preferida, ou uma das melhores, uma das que eu mais gosto.
se r. sentiu que eu não gostava dele, todos os outros sentem que eu gosto deles? será que eles sabem? será que eles sabem que meu coração é mole, manteiga, pudim, sorvete, algo doce e macio, coração de fruta, melancia, docinha, docinha? eles sabem disso e sabem que podem usar os dentes em mim, arrancar pedaço que eu vou encontrar um significado, um motivo, uma justificativa? ou ainda, sabendo disso, o pedaço jamais será partido, mas sim preservado? um mês e uma semana de aula são suficientes pra eu já pensar e sentir tudo isso? mas que raio de profissão é essa?
ser professor é muito esquisito. os momentos ruins. a voz cansada. disputar o espaço da fala. colocar as mãos no rosto e perguntar, exasperada, se eles não conseguem fazer silêncio por um instante só. no meio de tudo isso, no meio do ruído sem fim, no meio do agito e da preguiça, da indisposição e do cansaço, olhar para eles e pensar com tanta certeza e tanto espanto: meu deus, eu quero o bem dessas pessoas. eu quero o bem dessas pessoas de um jeito inédito e novo. não é como querer o bem de seus amigos, das pessoas que você ama. é parecido, mas é diferente. imagine-se olhando para a cara de um bando de gente de quinze anos. você já teve quinze anos há muito tempo. o que será que esses adultos sentiam por você? esse senso de responsabilidade? eu deveria falar mais de acentuação e de vírgulas? ou deveria dar mais espaço para ouvi-los? mais ainda? eu quero tanto que eles falem. eu quero tanto que eles se sintam seguros. eu quero tanto que eles se sintam confiantes. olho para os meus alunos e me pergunto: será que vocês sabem? alguns, talvez, sim. outros, não. a maioria não deve saber isso, não exatamente. talvez apenas pressintam de alguma maneira. talvez de nenhuma: quando eu era aluna, o que pensava dos sentimentos dos meus professores por nós? talvez nada.
li a flor e a náusea um monte de vezes nas aulas. sento-me na capital do país. passar a mão sobre a forma insegura. tenho vontade de dizer aos meus alunos desse ano, como tinha vontade de dizer aos alunos do final do ano passado: eu ainda estou aprendendo, também. eu estou aprendendo com vocês a ser professora. ainda estou tentando descobrir como ser a professora que eu quero ser, ou ainda, descobrir a professora que eu quero ser. olhos abertos, ouvidos abertos, peito aberto. não digo a eles porque eles não fazem ideia do cansaço que é tentar ensinar, então quero poupá-los: se eles me ensinam a ser e a não ser, que seja assim, no espontâneo. na saída de uma das aulas, viro para c. e pergunto se ele acha que vai dar certo, a apresentação da dissertação. claro que vai, ele diz, você é boa falando. abro um enorme sorriso e a defesa da dissertação diante de professores tão estimados por mim, cuja opinião vale tanto, parece tão, tão menor do que um menino de quinze anos, com toda a displicência e sinceridade, me dizendo que sou boa falando.
são oito e quinze de um domingo e eu não planejei direito minhas aulas da semana. tenho apenas uma vaga noção de algo a falar e a fazer amanhã. e a cada dia a angústia de estar ou não fazendo a coisa certa, do jeito certo. e desejando, no meio dos erros todos, que são muitos, que algum dos acertos conte e que eu possa ser a professora que eu gostaria de ser.
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