doce, amargo

caminho pela cidade com passos amargurados e os pulmões em chamas. nem é o ar mais seco que já tentei respirar. cada passada um esforço tremendo. bate um vento forte e devastador. bate um sol forte e devastador. de noite, no deserto, fará frio. meu corpo não pode nem suar. penso em um desejo interrompido porque sou tola, penso em um desejo continuado porque fui tola. a boca engole o ar ressecado. a boca: ressecada. encontro ossos nas ruas, coloco-os nos bolsos. encontro folhas mortas, coloco-as nos bolsos. às vezes, acho horrível a colocação pronominal. coloco eles, coloco elas, não soa melhor? canso de ter que inventar palavras, também não consigo mais inventar palavras (inventá-las, no entanto, soa mais bonito do que inventar elas). minha voz sobe arranhando minha garganta, não aguento mais falar. os sons me deixam tonta, não aguento mais ouvir. ponho um seixo na boca e assim torço para selar meu silêncio. vontade de desaparecer, vontade de não ter mais que responder a nada, vontade de dormir dias a fio, de ir embora. com os calcanhares feridos, concluo que esse caminho já não se desvela debaixo dos meus pés. a angústia rói as bordas das minhas costelas. constantemente rio da minha própria cara, todo esse exagero, como se eu não tivesse sorrido, rido, cantarolado. como se, como se. sinto que perdi qualquer coisa irrecuperável. não aguento mais lições de reconstrução, os pedaços não encaixam mais. depois, vão tentar me explicar, mais uma fastidiosa vez, que os pedaços não vão mesmo mais encaixar, que eu posso fazer algo bonito desse desalinho, que bom mesmo não é reconstruir nada, mas construir o novo com fios de ouro. sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde. ossos e folhas mortas, eu também um sorriso morto de palavras mortas. perto de mim e muito distante, canta um pássaro. 

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