parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudessem fotografar. um monte de pipas expostas na beira da estrada. as árvores retorcidas. campos de nada. cheiro de queimado e fuligem na terra por muito, muito tempo. um cachorro morto. um pássaro de rabo bifurcado. um ciclista. mercado cebolão. devia ter anotado tudo, a única nota que tomei foi a mais óbvia de todas, olhando o mato passar diante dos meus olhos: ah, é claro. sou eu quem está passando. as árvores se mexem de outras maneiras. sou eu que estou me movendo. pensei em tantas palavras o dia inteiro. por que não escrevi nenhuma? numa vã esperança de que fosse possível remontá-las depois. minha cabeça desfeita pela rapidez de tudo. lembro de pensar: é assim que se abre uma janela? penso no gesto, quadradinho desenhado no ar, você abriu uma janela. sonhei, depois, com uma janela. décimo primeiro andar, era noite, eu olhava por ela, e a floresta entrava pela janela, pela varanda, noite adentro a floresta na sala, até que uma onda do mar quebrava ali, na janela, décimo primeiro andar, uma onda, molhando as árvores de folhas bem escuras, grandes, uma floresta do mundo antediluviano, e o mar, e a água salgada se acumulava nos meus pés. é assim que se abre uma janela? para que entre floresta e mar, ar e água salgada. meu pai, dirigindo na volta, diz para a minha mãe: bota a mão aqui. ela coloca a mão no joelho dele e faz um carinho. ele a olha, risonho, exasperado, exclama: é pra tu segurar o volante, mulher! rio à beça disso. registro duplamente o fato. meus pais são idosos, um dia desses minha mãe disse que achava que ainda viveria quinze anos bem. pensei, e penso: não, não, quinze anos é muito pouco. um-salto-de-peixe. então eles são velhos, e eu olho para os dois. eu olho para os dois. eu olho de novo. fico apavorada com o que ando sentido. tenho vontade de dizer. tenho vontade de perguntar. tenho vontade de confirmar. fui indagada: o que você quer saber? de novo, quero rir, rir muito. o que eu quero saber? o que eu quero saber. tudo. pensamento, sentimento, ideia. as coisas vão se movendo rapidamente diante dos meus olhos. vou calando um monte de palavras que querem e não querem ser ditas. palavras que morrem na barreira dos dentes. ou: i want to say something but shame prevents me. espalmo as mãos vazias, isso é um presente? um presente que não pode, não deve ser recebido, é um presente? sinto vontade de dormir. no balanço do ônibus, fecho os olhos com a cabeça no vidro da janela e a trepidação faz com que os sonhos todos tremam também. posso contar um segredo? a água do mar nos meus pés, a floresta encharcada. há dois anos atrás, o homem que eu amava me chamou de histérica. ou melhor, com alguma impaciência, sussurrou para mim: a definição da histeria é você querer uma coisa sem pedir. essa não é a definição da histeria. talvez essa não seja a exata frase. importa? o que importa? a água do mar nos pés. o homem que eu amava e que já não me amava, e que cansado do meu choro e do meu grito, dizia que a definição de histeria era o que ele achava que eu estava fazendo. eu estava pedindo, eu tenho certeza de que estava pedindo. uma floresta inteira entre pelo décimo primeiro andar. migalhas dormidas do teu pão. observar o olhar do amante se transformar no olhar de um estranho. a definição de histeria é. dois anos atrás, meu cabelo caindo, o sono todo picotado por lágrimas, a pedra no fundo do estômago, o punhal fincado nos pulmões. sendo consumida pelo incêndio dos outros. posso te contar um segredo? nos sonhos do ano seguinte ao dia em que o homem que eu amava disse a definição de histeria é (você), eu sempre perguntava: por quê? por-que-você-fez-isso-comigo. como-você-pode. a floresta entra pela janela. olho para a água do mar cobrindo meus pés. mãos estendidas, nada, nada nelas, além de tudo o que eu gostaria de poder oferecer. o incêndio agora é meu. cheiro de fuligem na estrada. fecho os olhos para preservar as flores e a espuma das ondas. é assim que se abre uma janela?
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