vivo num mundo em que o amor é possível.
estou lavando a louça, esse pensamento passa pela água nas minhas mãos. como sempre acontece, fico repetindo, repetindo. um mundo em que o amor é possível. venho escrever. tenho algo infantil: me importo com aniversários, muito. os aniversários dos meus amigos são datas sagradas, dias de devoção, o seu dia, o dia que poderia ser um dia qualquer, mas que foi abençoado por sua presença. é engraçado digitar tudo isso sabendo que ontem foi meu aniversário, claro. isso tudo é aplicável a mim? não, mas sim: também gosto do meu aniversário, não por qualquer sacralidade que sinta em relação ao meu dia, mas porque sei que é o dia em que o amor é possível. muitas palavras. muitos abraços. duas de minhas coisas preferidas.
outra brincadeira. todos os dias no mundo o amor é possível.
minha amiga da escola me fez um bolo de aniversário. ela diz: eu trato todos os meus amigos com dedicação, morgana! você não é especial!, e eu rio, maravilhada. que bom que eu não sou especial, que bom que todos os amigos são tratados assim e que eu posso compartilhar sua generosidade. imagino sua cozinha, ela na frente da bancada, mãozinhas minúsculas, cansada, claro, estamos no quarto bimestre, ela está sozinha na coordenação, a gestão da escola deixa a desejar, os alunos são malucos, os professores, mais. então é terça à noite, e ela está cansada, com mãozinhas pequenas fazendo uma cobertura, fazendo um creme, fazendo um bolo inteiro, para o meu aniversário, a ser passado de manhã e de tarde na escola. de manhã, ela diz: ih, esqueci que era hoje, e eu respondo: é mentira sua. sem nem saber que havia um bolo feito por mãozinhas exaustas do trabalho, de noite, vencendo todo o cansaço. é um lindo bolo, os professores comem à beça, eu fico feliz e orgulhosa pensando vejam só vocês, e toda essa maravilha foi feita em meu favor, todo o carinho em fazer algo especial para alguém é meu.
no comecinho da manhã, os alunos da turma que sou conselheira me dão bom dia. respondo e vou para a minha sala, então escuto seus passos, eles estão correndo em minha direção gritando professora!, professora!, e então são uns dez braços se pondo sobre mim, sou puxada para dentro de um abraço imenso.
recebo mensagens de madrugada, de manhã. minha amiga bruxa diz que chorou vendo nossas fotinhas juntas. minha amiga artista relembra alguns desenhos que já fez de mim ao longo de todos esses anos. minha amiga de infância diz: você é o amor da minha vida. meu amigo de infância diz que ama me ouvir falar de o que quer que seja. minha amiga de infância diz: que bom que a gente vai se amar para sempre. meu amigo (me falta uma caracterização precisa, tenho vontade de dizer 'dançarino' pelo jeito que ele existe no mundo) reabilita a música deusa do amor aos meus ouvidos. minhas amigas dizem. meus amigos dizem. me encho dessas palavrinhas todas, elas inundam meu coração. inundar é uma boa palavra? irrigam? molham a terra. nutrem a terra. sinto amor e não tenho medo.
entro na sala de aula pronta para ceder meus dois horários ao meu amigo da escola, e sou tomada pelo grito dos alunos, surpresa, um bolo, docinhos, salgadinhos. eles riem e batem palma e eu me posiciono confusamente na frente da mesa. no dia anterior, o bolo feito pelas pequeninas mãos da minha amiga foi carregado sala a dentro pelo meu amigo da escola, sou surpreendida ali também, boquiaberta vou embaraçada tentar apagar as velas, ele se inclina em minha direção e diz: tão fofinha você sem graça. fico menos sem graça com meus alunos, ali já estou acostumada a estar diante do quadro. depois, meu amigo e nossas crianças vão me contar, mais chocados que eu, que quase flagrei a surpresa várias vezes. eles quase não acreditam quando eu digo que não sabia de nada, não notei nada, não reparei em nada, não desconfiei de nada. que eu não poderia imaginar isso, que eu não sabia. me divirto com meu próprio alheamento, me divirto porque é uma surpresa de verdade, como foi a do dia anterior; porque é uma surpresa de verdade que esses adolescentes que me exaurem e que me comovem igualmente também (eu posso dizer? eu posso dizer?) gostem (!) de mim. meu amigo da escola me olha com seus olhinhos doces, cansados, bonitos, adoráveis, tenho vontade de dizer a ele como seu olhar carrega sempre um monte de coisas, tenho eu vontade de dizer um monte de coisas, mas digo: você é um mentiroso!, porque fui perfeitamente enganada, e os alunos conversam entre si e com a gente, e me dizem que queriam fazer algo para mim fazia um tempão, e que surgiu a oportunidade com o aniversário. fico ainda mais surpresa, mais feliz, chegam lágrimas nos meus olhos, eu agradeço.
não consigo parar de sorrir. agora mesmo, não consigo parar de sorrir. sinto que essas últimas semanas me ensinaram uma porção de coisas sobre o amor, mas sinto que estou sempre aprendendo sobre o amor. o amor nas palavras, o amor nos gestos, o amor no dia a dia, o amor do reencontro, o amor da saudade. no meio de uma aula, sinto vontade de parar de falar por puro cansaço de estar outra vez repetindo a matéria, olho para as minhas três alunas que sempre estão prestando atenção e continuo falando. a atenção. o amor na forma de estudantes. o amor de formas confusas, o amor derretido, o amor dentro de uma forma de bolo. um mundo em que o amor é possível, sempre possível, sempre uma escolha na porta, sempre nos olhos, na boca, nos joelhos, nas mãos. lembro da professora que eu amo dizendo que eu tenho um olhar amoroso, que meu olhar dá outro significado a coisas e a pessoas. é uma honra ser percebida assim, embora eu saiba que não é verdade: as pessoas e as coisas são o que elas são, e eu as amo por isso.
qualquer dia desses, estarei ainda mais cansada, sendo roída por dentro por angústias banais, querendo poder deitar em qualquer chão disponível, e vou precisar que o mundo me lembre que o amor é possível. e, no sorriso de alguém que amo, ele vai.