os meus guris

quando comecei esse blog, escrevia como forma de fugir da escrita da dissertação.

parece uma loucura que eu tenha defendido a dissertação. caramba. quantas vezes ela apareceu aqui nas postagens como algo impossível de acabar, de escrever, de fazer? e agora está feita, defendida e lida por uma banca generosíssima que recomendou que eu procurasse algum lugar para publicá-la. daqui a poucos dias, começam as minhas aulas do doutorado e a angústia de um novo texto a ser escrito. por agora, estou escrevendo no blog como forma de fugir de algo muito mais complicado do que uma dissertação ou uma tese: o planejamento de uma aula.

não preciso, felizmente, entregar um plano de aula completo, todinho por escrito, para a escola. acho que isso me geraria um pânico tremendo. é meu primeiro ano sendo professora, a primeira vez que estou com as turmas desde o princípio. então toda semana preciso descobrir como vou passar o conteúdo e que conteúdo quero passar. toda semana, todo dia, toda hora estou descobrindo ou tentando descobrir a professora que eu sou, ou que quero me tornar. todos os dias me pergunto: sou a vergonha da profissão? estou fazendo isso do jeito certo? é para ser assim? sinto vontade de pedir licença aos outros professores, com mais tempo, para assistir suas aulas. as aulas que estão frescas na minha memória são as aulas da universidade. queria me lembrar das aulas da escola, das aulas de português da escola. o que dizia o fábio coelho? o que dizia a fábia? a ceiça? o que me diziam meus professores, como eles preenchiam aquele tempo? falatório sem fim? atividades? outras informações?

meu maior problema como professora é que eu adoro conversar com os alunos. parece engraçado anunciar isso como um problema. o que eu devo a eles? qual o equilíbrio? quero ouvi-los, quero que eles aprendam. o que eles vão aprender? escrevo no quadro: cantigas de escárnio, cantigas de maldizer. volto-me aos meus alunos, em todas as salas, seis vezes repetindo a mesma pergunta: qual que é o nome de um tipo de música que se faz para falar mal de alguém, um outro cantor, normalmente? e em todas as salas, depois de uns instantes de pensamento, alguém brada: ah! uma diss! e eu sorrio, pegando os trovadores por uma mão e o rappers por outra. sim, sim, balançando a cabeça, uma diss.

o que eles vão aprender? encho o quadro de informações que logo estarão esquecidas, alguns garotos puxam suas cadeiras para perto da minha mesa e copiam enquanto conversam comigo. ao final, um deles diz que é muito melhor copiar um quadro imenso enquanto se conversa com a professora, e fico imensamente alegre. ah, i., é muito melhor ser professora enquanto se conversa com os alunos. qual que é o nosso equilíbrio? ele existe? penso nas coisas que eu queria que eles fizessem: escrevessem mais, escrevessem melhor. lessem mais. o que eu estou fazendo para isso? estou fazendo o suficiente? falar dos livros, mostrá-los, ler passagens em aula: isso basta? pedir para que eles escrevam, ouvir os resmungos de preguiça e insatisfação, insistir. isso basta? 

conheço meus alunos há um mês e seis dias e sinto que já os amo profundamente. como é possível? criaturas falantes e esquisitas, barulhos quase o tempo todo, resmungos, revirar de olhos. os alunos que eu jamais seria amiga caso fosse também aluna moram no meu coração. os alunos que eu obviamente seria amiga caso fosse aluna, também. até mesmo os mais difíceis. até aquele que de cara eu não gostei, o primeiro que eu aprendi o nome, com seu semblante de profundo tédio, nenhuma vontade de fazer nada que eu pedia, nem mesmo de fingir fazer. diante dele, todas as vezes eu pensando que não podia demonstrar, que ele não podia saber do meu desgosto. eu tenho trinta anos, ele tem quinze, eu sou responsável por como ajo sobre meus sentimentos, ele ainda está aprendendo essas coisas todas. depois de uma breve bronca, dada até com alguma tentativa de humor, na última aula, ele me olha com um sorriso enorme, malandro, sorriso de lobo e diz: você não gosta de mim, professora, mas eu gosto de você. como não amá-lo de imediato, amar sua perspicácia, sua leitura de mundo, seu sorriso ao enunciar essa frase que por qualquer outra boca poderia sair com imensa angústia? 

na sala de aula, muitas vezes, me sento no meio deles, ocupo uma carteira. d. coloca um chocolate sobre minha perna e sai. depois eu pergunto: ué, é pra mim? e ele confirma. meu primeiro chocolate. l. e m., em dias diferentes, elogiam minhas roupas, falam que eu sou estilosa. l.s., umas semanas atrás, me dizendo que quando crescesse, queria ser que nem eu. por quê? por eu ser uma adulta com personalidade. lembro de ter quinze anos e morrer de medo de, aos trinta, não amar mais o álvares de azevedo. de olhar para os adultos como pessoas entediantes. ah, o descompasso do tempo. p., g. e k. discutem jujutsu kaisen enquanto copiam a matéria. não consigo parar de sorrir durante a conversa. eles sentam nas carteiras bem na minha frente. "vocês são muito ignorantes," p. diz, erguendo a palma da mão, "vocês não leram o mangá". essa frase me faz sorrir o dia inteiro. m. fala que mataria todo mundo da sala, menos eu. nervosamente, digo: muito obrigada, m., mas por favor, não mate ninguém, nunca. f. puxa uma cadeira para se sentar ao meu lado e conversar comigo e d. sobre o pequeno trecho do documentário d'o povo brasileiro que vimos. eles falam coisas sobre o mundo e eu escuto, fascinada. sentada do lado dos alunos da sala que sou conselheira, a. me pede conselhos amorosos. e. e g. me perguntam, outra sala, se eles são minha turma preferida, ou uma das melhores, uma das que eu mais gosto. 

se r. sentiu que eu não gostava dele, todos os outros sentem que eu gosto deles? será que eles sabem? será que eles sabem que meu coração é mole, manteiga, pudim, sorvete, algo doce e macio, coração de fruta, melancia, docinha, docinha? eles sabem disso e sabem que podem usar os dentes em mim, arrancar pedaço que eu vou encontrar um significado, um motivo, uma justificativa? ou ainda, sabendo disso, o pedaço jamais será partido, mas sim preservado? um mês e uma semana de aula são suficientes pra eu já pensar e sentir tudo isso? mas que raio de profissão é essa? 

ser professor é muito esquisito. os momentos ruins. a voz cansada. disputar o espaço da fala. colocar as mãos no rosto e perguntar, exasperada, se eles não conseguem fazer silêncio por um instante só. no meio de tudo isso, no meio do ruído sem fim, no meio do agito e da preguiça, da indisposição e do cansaço, olhar para eles e pensar com tanta certeza e tanto espanto: meu deus, eu quero o bem dessas pessoas. eu quero o bem dessas pessoas de um jeito inédito e novo. não é como querer o bem de seus amigos, das pessoas que você ama. é parecido, mas é diferente. imagine-se olhando para a cara de um bando de gente de quinze anos. você já teve quinze anos há muito tempo. o que será que esses adultos sentiam por você? esse senso de responsabilidade? eu deveria falar mais de acentuação e de vírgulas? ou deveria dar mais espaço para ouvi-los? mais ainda? eu quero tanto que eles falem. eu quero tanto que eles se sintam seguros. eu quero tanto que eles se sintam confiantes. olho para os meus alunos e me pergunto: será que vocês sabem? alguns, talvez, sim. outros, não. a maioria não deve saber isso, não exatamente. talvez apenas pressintam de alguma maneira. talvez de nenhuma: quando eu era aluna, o que pensava dos sentimentos dos meus professores por nós? talvez nada.

li a flor e a náusea um monte de vezes nas aulas. sento-me na capital do país. passar a mão sobre a forma insegura. tenho vontade de dizer aos meus alunos desse ano, como tinha vontade de dizer aos alunos do final do ano passado: eu ainda estou aprendendo, também. eu estou aprendendo com vocês a ser professora. ainda estou tentando descobrir como ser a professora que eu quero ser, ou ainda, descobrir a professora que eu quero ser. olhos abertos, ouvidos abertos, peito aberto. não digo a eles porque eles não fazem ideia do cansaço que é tentar ensinar, então quero poupá-los: se eles me ensinam a ser e a não ser, que seja assim, no espontâneo. na saída de uma das aulas, viro para c. e pergunto se ele acha que vai dar certo, a apresentação da dissertação. claro que vai, ele diz, você é boa falando. abro um enorme sorriso e a defesa da dissertação diante de professores tão estimados por mim, cuja opinião vale tanto, parece tão, tão menor do que um menino de quinze anos, com toda a displicência e sinceridade, me dizendo que sou boa falando. 

são oito e quinze de um domingo e eu não planejei direito minhas aulas da semana. tenho apenas uma vaga noção de algo a falar e a fazer amanhã. e a cada dia a angústia de estar ou não fazendo a coisa certa, do jeito certo. e desejando, no meio dos erros todos, que são muitos, que algum dos acertos conte e que eu possa ser a professora que eu gostaria de ser. 

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