elogio da professora

quando mais nova, eu tinha um hábito: anotar os nomes das professoras e dos professores, relembrá-los sempre, eu não queria esquecê-los. falhei comigo e com eles. parei de relembrar, esqueci. da alfabetização para trás, não lembro o nome de nenhuma das tias. uma pena. se eu forçar muito, consigo lembrar alguns nomes do fundamental um. 

tia josefina. ela não era professora, era a coordenadora. lembro-me dela porque uma vez estava na sua sala (eu ia na sala da coordenadora apenas para conversar com ela, nos primeiros anos, fui uma criança que conversou mais com adultos do que com outras crianças) e abracei um enorme globo terrestre que ela tinha sobre a mesa. depois que o soltei, ela me pediu para abraçá-lo de novo, para me fotografar. ela me mandou a foto. não sei se eu ainda a tenho. 

tia joelma (ou tia jô). e tia cíntia. elas eram professoras da primeira série? da segunda? eu não sei. uma das duas, ou talvez nenhuma das duas, foi a professora que um dia, quando eu estava na primeira série, chamou meus pais para conversar, com uma redação minha nas mãos. a redação era sobre ter passado uma noite em um castelo encantado, brincando com fadas e magos, e acordar pela manhã pensando que tudo não passara de um sonho, até perceber que eu ainda estava usando o vestido azul que uma fada me presenteara. ela queria permissão para enviar a redação para o jornal diário do nordeste, para que fosse publicada na parte infantil. meus pais ficaram exultantes (coitados!). 

na terceira série. tia ana paula? será que era daqui a tia cíntia? quem será que era? numa aula, tinha pedido para fazermos uma redação de dia dos pais. algumas aulas depois, disse que gostaria de ler uma redação em voz alta, sem identificar a autoria. lembro de ter pensado: ah! a redação deve ser da rochana. marla rochana era uma menina doce, cuja irmã mais velha também se chamava morgana, e era muito, muitíssimo inteligente em tudo. lembro do meu coração acelerando quando a professora começou a ler e eu reconheci as minhas palavras. ela estava lendo as minhas palavras. 

se vocês se perguntarem quem um dia disse pra essa criatura que ela tinha jeito pra escrever, pensem nas professoras que eu sequer tive a decência de manter o nome. professoras, obrigada. me perdoem. estou escrevendo ainda porque ali descobri que escrever era mesmo legal. professoras que eu não lembro o nome, será que vocês se lembram do meu nome? espero que não. espero que não lembrem do meu nome e não lembrem de mim, mas lembrem orgulhosas de si mesmas, do gesto de generosidade na escola, de serem professoras que incentivaram o que quer que seja isso hoje: obsessão por palavras. gostar de blogs. eu. 

saindo do fundamental, eu quase lembro mais. não tínhamos mais tias, isso ficava da quarta série para trás. glauber, o professor de geografia. eu e a minha amiga stefany vivíamos conversando com ele durante a aula. uma vez, minhas notas iam mal demais, e o glauber estava corrigindo as provas. ele leu algo e disse que era absurdo, e foi ver quem tinha escrito. lembro da enorme vergonha de ouvir minhas palavras, minhas palavras em voz alta, nada como aquela sensação da redação. pior ainda foi o olhar de decepção e espanto diante do nome de quem tinha escrito tamanha besteira. ele não brigou comigo ou coisa parecida. mas eu nunca mais tirei nota baixa em geografia. 

a fábia, professora de português. eu queria lembrar mais das professoras de português. fábia, ceiça. quem mais? lembro do professor de literatura do ensino médio, o fábio coelho. que numa aula disse que policial não prestava. que me chamava de noiva do álvares de azevedo. que olhou para mim, surpreso e maravilhado, quando começou a declamar via láctea e eu terminei de declamar com ele. lembro do alzitônio dizendo que era faixa preta em hapkidô. ele também adorava narrar os livros que leríamos. ele contou que no senhora, a certa altura, fernando seixas estava ajoelhado diante de aurélia camargo, penitente, e ela dizia a ele: a partir de hoje, eu sou sua senhora. essa cena não existe. ele também narrou uma cena em que bentinho chegava em casa e se deparava com capitu lânguida na cama e escobar, sem blusa, aos seus pés. outra cena que não existe. ele adorava apimentar os livros. eu o adorava por isso. mostrei a ele textos que eu tinha escrito. ele fazia notas na folha do caderno. queria lembrar mais. queria os detalhes daqueles de quem eu acabei tentando seguir os passos. 

história. d'laías. o professor que só usava blusas brancas. tinha o sampaio, que tocava bateria e dizia que não era ateu nem comunista. tinha o zilfran, que era ateu e comunista. o hermano. acho que o hermano, assim como o zilfran, e também o d'laías eram do partidão. tinha o pybore, por quem eu fui profundamente obcecada. bobagem minha. os outros eram muito melhores. uma vez encontrei d'laías, sampaio e zilfran numa livraria. queria encontrá-los de novo, depois de sair da escola. nunca mais os vi. bom, mudei de cidade. mas não é como se meus amigos de fortaleza vivessem relatando esses encontros. 

lembro do dario, professor de matemática. fumava feito uma chaminé. eu fiquei de recuperação em matemática, um aluno que tinha algum gameboy também. lembro na sala de aula da recuperação, dario sentado no chão mandando ver em algum joguinho. tinha o jairo, professor de física. eu o adorava. no meu aniversário de dezesseis anos, ele levou o violão pra sala e tocou umas músicas dos beatles pra mim. lembro disso com carinho porque não sei se jairo assediou ou não outras alunas, mas não foi assim comigo. a serenata não foi numa chave ruim ou esquisita. foi só um professor, que era querido, atendendo o pedido de uma aluna que ia mal, muito mal na sua matéria. um professor de física se divertindo com seu violão e as músicas que gostava. lembro da sineide, de ciências. no meu blog da adolescência tem uma postagem pra ela, já daquela época. sineide me parecia uma mulher radical. seu marido faleceu enquanto ela era nossa professora. eu queria ter mostrado o que escrevi para ela. não mostrei. não faria diferença, ou faria. queria encontrar todos os professores. falar: eu penso em vocês. até os que eu esqueci. cristiane, também professora de história. o filho dela era autista, quando autismo parecia uma conversa muito específica e distante. assistimos, claro, o nome da rosa com ela. joão mendes, carrasco matemático. uma vez eu devo ter chorado em alguma aula dele ou diante dele. no final do ano, ele me abraçou, um pedido de desculpas. um professor pede desculpas. arnaldo também era de matemática, lembro dele como professor da pior aula do mundo. sinto muito por sua aula tão ruim, arnaldo. deve ser um saco falar de logaritmo. 

professoras e professores de escola. assim como pais, assim como avós, vocês sofrem do terrível problema do descompasso. quando eu era criança e adolescente, todos vocês pareciam tão, tão velhos. tão distantes de mim. quantos anos será que vocês tinham? alguns, trinta e algo? alguns, quarenta e pouco? andando nos corredores da minha universidade, fazendo licenciatura e pensando: eles fizeram licenciatura. eles foram na biblioteca de suas universidades. professoras e professores da escola, eu caminho com vocês. para longe e para perto. desejando revê-los, agora que eu sei – eu sei? – do descompasso. agora que eu posso conversar com vocês direito. agora que eu sei que alguns de vocês devem ter fumado em seus pátios, que alguns de vocês se envolveram em manifestações, que todos vocês foram da licenciatura, que nem eu. todos nós lemos paulo freire! eu e vocês, professoras e professores da escola. eu e vocês. 

quem mais? queria tanto lembrar. o anquisis, de inglês. que nome é esse. uma vez ele estava arremessando o pincel para cima e para baixo, e aí tropeçou e parou numa posição engraçada, e emendou com uma piada de física. lembro de ter sentido muito deleite diante de uma piada tão bem ajustada. professores engraçados. o anquisis fazia a gente gravar videoclipes como trabalho. o que será que você leu na sua faculdade? que livros lemos iguais? clássicos da língua inglesa. forço a memória. agora me lembro da andreia, que era diretora do colégio no fundamental. ela uma vez me deixou tocar o sino que anunciava o final do recreio. foi na escola que um professor, qual será, pela primeira vez fez a piada de ler meu nome inteiro na chamada e finalizar com "de bragança e bourbon". meu orientador do mestrado fez a mesma brincadeira. professoras e professores, vocês vencem o tempo, ainda que não vençam a memória. 

eu devia ter anotado os nomes todos em cadernos. eu jurava que nunca esqueceria. como eu poderia esquecer os nomes e os rostos de todas essas pessoas que eram tão, tão importantes? que me divertiam, ou que me angustiavam, ou que conversavam comigo. pra que eu ia tanto na mesa dos professores? adorava falar com eles. ou fugir deles. matei muitas aulas do joão mendes na biblioteca. não lembro o nome de nenhum professor de química. lembro do marcelo, de biologia, mas nada mais do que saber que ele existia. tinha a fatima, também, outra série, mas biologia, só usava slides, um saco. lembro de um professor que parecia muito, muito velho. claudio? ele dizia para a gente levar no vestibular um chocolate e um limão. o chocolate para a gente, o limão para o concorrente. ria à beça de si mesmo, nós ríamos também. professor... well morais! escreveu um livro e me deu para lê-lo. queria saber se ia agradar minha faixa etária. 

uma vez, quando tinha acabado de entrar na minha primeira graduação, telefonei pra escola, para falar com a tia rose. ela era coordenadora do período da tarde em que eu ficava no colégio, da primeira até a quarta série. a secretária me perguntou quem eu era e eu expliquei, mas pedi para que ela não dissesse para a tia rose. queria fazer surpresa. quando a tia rose atendeu, eu perguntei se ela reconhecia a minha voz, esperando que não, claro. muitos anos. mas ela disse: morgana feijão?, cheia de surpresa. 

se um dia eu tiver a sorte de reencontrar algum dos meus professores, eu não perguntaria se me reconhecem. só diria que os reconheço. ao vê-los. em mim. ah, se não fosse o descompasso do tempo. queria ter dito a todos vocês. uma vez, eu e stefany fizemos uma carta enorme para a professora angela, mas não a entregamos, porque ela nos chateou. era uma carta que ia da porta ao fundo da sala. que empreitada. 

eu ainda queria falar das professoras e dos professores da universidade. talvez outro dia. mas preciso explicar também uma coisa. nessa quinta, assisti a uma fala da professora que por vezes chamo apenas de a professora que eu amo, alcunha quase injusta, já que há tantas professoras e professores que eu amo e amei. a professora que eu amo falou sobre professores. sobre o legado inesperado de professores e pais: não o legado deixado aos filhos e aos alunos, ou melhor, não apenas esse legado. mas o retorno. o que pais e professores recebem de nós. a influência mútua. achei isso tão bonito. professoras e professores, que me esqueceram, que esqueceram a sala a qual pertenci, mas que retém alguma impressão, eu imagino, de tudo. pode ser cansaço. pode ser uma breve alegria. pode ser raiva. pode ser tristeza. pode ser angústia. pode ser uma risada. pode ser uma música dos beatles no violão. pode ser alunos comemorando terem visto você usando uma blusa verde e não branca. pode ser uma peça pregada. pode ser uma aula muito boa. pode ser uma aula muito ruim. 

professoras e professores, os que eu esqueci e os que eu lembro, os que eu mal lembro, os que eu lembro mal, os que eu lembro bem. uma piada. um dia. um frase. uma aula. queria esbarrar em vocês. queria encontrar vocês. não quero perguntar se vocês lembram de mim. quero dizer a vocês que eu lembro, que essa que vocês encontram é o resultado, dentre tantos encontros, do encontro com vocês. para o bem e para o mal. obrigada. 

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