horas tristes no expediente
eu queria escrever para me tornar um monstro.
um desejo tolo. uma parte de mim quer encher a boca e dizer que já sou um monstro. eu já sou um monstro. que coisa mais deliciosa de se pronunciar. infelizmente, não consigo, não como gostaria. eu quase não sou um monstro, eu quase sou um monstro. sou tão sensível e tão gentil. tão amorosa e tão alegre. tão compreensiva. gosto de estar perto das pessoas e chego a acreditar que muitas delas também gostam de estar perto de mim. um monstro pode ser tolerável? um monstro pode gostar de ser isso, isso e aquilo? se eu fosse um monstro mesmo, eu saberia de cara. quem é um monstro não precisa lutar para sê-lo, está inscrito na testa. eu não sou o monstro que vos fala, mas queria ser.
as emoções são divertidas. se eu sou, e aqui se insere uma risada, intensa, é de se imaginar que essa intensidade sirva para tudo. queria encontrar outra palavra. intensa está cheia de piadas e ironias coladas nela. quero falar diante do público: não, não estou dizendo que sou intensa como nos prints de conversas estúpidas de whatsapp que vemos por aí. estou dizendo que sou intensa no sentido de. e aí inserir e criar um novo sentido. eu choro muito. posso dizer que sou alguém com sentimentos aflorados, e tolos. sempre sentimentos aflorados e tolos. eu amo muito. fico empolgada. comunico as coisas com uma voz de espanto. o que é bonito me comove. vivo em comoção. quando eu fico com raiva, quero destruir tudo na minha frente. quando eu fico triste, o desejo é de morrer imediatamente. quando é bom, é bom. quando é ruim, eu quero ser um monstro.
tenho tanta vontade de destruir. o ruim é que é ruim estar na ruína. então o desejo de destruir antecipa o arrependimento. talvez um monstro possa não ter arrependimento. imagino o monstro muito livre. ele se zanga e destrói. ele é um pouco uma criança. eu queria dizer coisas horríveis. é tão divertido levar jeito com as palavras, é divertido porque funciona cruelmente. eu sei dizer. eu posso abrir minha boca e tudo vai ser vidro e lâmina. eu quero cuspir escorpiões. eu quero que o veneno transborde, nojento, pelos meus lábios. vontade de brigar. vontade de bater. vontade de queimar. vontade de quebrar. irremediavelmente, quebrar. mentira. remediavelmente. eu não consigo ser o monstro que eu quero ser. eu me preocupo, eu não quero magoar, eu quero poder voltar, eu quero abraçar e sorrir de novo. depois. mentira. eu não quero. eu quero o desenlace. eu quero a mágoa eterna. nunca mais vou olhar na sua cara olhando a minha cara. nunca mais quero seu rosto perto. mentira. quero seu rosto perto para arranhá-lo e me deparar com o choque de ser o monstro. vou me arrepender. não vou me arrepender.
muitas vezes, o desejo de escrever é esse. se eu não vou ser um monstro de verdade, onde vale, onde machuca, então posso ser um monstro de mentirinha. um fantoche. teatrinho. o monstro das palavras. uma vez eu tentei e me frustrei comigo mesma: quanto mais escavava para encontrar o rosto monstruoso, mais só achava o mesmo insuportável choro. quem vai acreditar em um monstro que mal consegue pronunciar uma palavra sórdida, tão ocupado que está gaguejando diante da própria ferida? o monstro fere. o monstro é ferido. o monstro é ferido porque fere. adiante ser um monstro reativo? a monstruosidade é só reação ao meio. anseio pela monstruosidade pura. eu te machuco só porque quero te machucar. toda vez que eu machuquei alguém, me arrependi. às vezes, me arrependi de me arrepender, mas já era tarde demais.
gosto de ler livros de personagens malucas, obsessivas, cometendo atos que nada justifica. ah, imagine só: nada justifica. que liberdade. quero me comportar de um jeito que nada justifique, só eu mesma, eu me justifico, eu desejo, eu quero quebrar. eu quero ser ana meneses, dançando com as roupas fétidas de uma nina recém-morta. sorrio com a cena. lembro que ana é um monstro também cheio de lágrimas. parece inescapável, e eu me irrito.
quero acabar com tudo. quero que o mundo acabe. quero eu acabar o mundo. se o mundo vai acabar, e eu choro. incapaz da verdadeira monstruosidade, tão leve e lépida, inconsequente. todos os meus fogos são metafóricos. que bobagem desejar destruir. quem quer destruir não deseja, destrói. quem é um monstro, é um monstro. quem sabe que é não precisa tentar se afirmar. o desejo de ser é infantil. se você fosse, não gostaria de ser um. se você fosse, não se importaria em ser um. tantas possibilidades de ser.
talvez ser um monstro seja uma fantasia de controle. de descontrole. uma fantasia presume controle, logo, ser um monstro na cabeça controla inclusive a reação do machucado. imagine, que trágico, ver-se como um monstro inútil: fantasiei te machucar, tentei e não consegui. a ficção permite. queria machucar, mas não tanto assim. só um pouquinho. um impulso indócil. eu sou um monstro? posso ser? olho para os livros infantis povoados de amáveis monstros. devo ser um deles. pode ser que não consiga nem ser um deles. pode ser que nada. como sempre, nada.
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