rock de pai
eu sou um certo tipo de nepobaby que existe no brasil. isso é, não sou herdeira de uma família de negócios, não consigo traçar minha árvore genealógica até sei lá quantas gerações, nunca vou gravar um episódio de um certo podcast pedindo perdão pelos crimes dos meus avós ou coisa parecida. mas sou filha de servidores públicos que foram esquerdistas na sua vida universitária. não sou a primeira geração da minha família a ir para a universidade, mas sim, a segunda.
muitos dos livros que eu mais tenho gostado dos últimos tempos tratam da primeira geração. a tetralogia, a ernaux, o sobre a terra somos belos por um instante, por aí vai. leio esses livros e penso nos meus pais. minha mãe é do interior do ceará: nasceu no cariré, o google me informa que em 2020 a população ia lá por seus dezoito mil e poucos habitantes. ainda criança, a família se mudou para sobral, para nós, cearenses, os estados unidos de sobral. não devia ser muito assim na época. aos dezoito anos, minha mãe saiu de sobral para se mudar para fortaleza, indo morar na casa de uma tia. ela então começou a fazer serviço social na uece. do lado de meu pai: meus avós paternos são de quixadá, mas se mudaram para fortaleza e os três filhos já nasceram na capital. meu pai fez duas graduações, embora tenha me escondido a primeira e eu só a tenha descoberto quando achei seu diploma na época de arrumar as coisas para se mudar pra brasília: biblioteconomia e direito, ambas na ufc. os dois se conheceram no sindicato. meu pai era vigilante noturno no ministério da agricultura, minha mãe trabalhava como assistente social num hospital especializado em hanseníase.
eu apanhei duas vezes na vida: uma quando estava me alfabetizando, confundia o "b" e o "d" feitos de cartolina, a cada vez que errava, meu pai batia na minha mão com uma chinela. a outra foi quando fiz birra num restaurante porque não queria almoçar, queria picolé. minha mãe me deu o picolé e disse que em casa conversaríamos. a conversa foi o cinto batendo na palma da minha mão e uma vez em cada coxa. depois disso, subi em cima da minha cama e, quando meu pai foi me ver, perguntei: você veio me bater mais?; quando fui até a cozinha pegar água, encontrei os dois chorando. outro castigo veio de um dia em que queria muito comer o molho de cachorro quente da minha mãe (até hoje, uma delícia) e ela, irritada com minha insistência, fez uma panela de molho e disse que eu só sairia dali quando comesse tudo. ela mesma não aguentou o castigo, chorando quando comecei a chorar.
pontuo essas três histórias porque são apenas elas três e porque meus pais cresceram apanhando terrivelmente. cintos, cipós, chinelas: meu pai disse que uma vez meu avô colocou um copo emborcado sobre a cabeça dele, batendo no fundo do copo, a pancada ressoando pelo crânio do menino que um dia iria me criar. minha mãe apanhava preventivamente: como meu avô batia muito na filha mais velha, nas palavras dele muito namoradeira, minha mãe, sem fazer nada, apanhava e ajoelhava em grãos de milho para não ser namoradeira.
na estante da minha casa, os nomes que depois de muitos anos eu iria reconhecer: lukács, gramsci, freud, luxemburgo. uma edição caindo aos pedaços, já nos anos 2000, de os sertões. o primeiro volume das brumas de avalon, com uma dedicatória feita em doze de novembro de 1995, meu aniversário de um ano: minha mãe dizia que esperava que esse livro fizesse parte da minha biblioteca. ela se esqueceu disso e, quando eu tinha quinze anos, mexendo na estante, reencontrei o livro, perdido na camada mais ao fundo da prateleira mais alta. junto dele, estava também um livro sobre lilith. o mulheres que correm com os lobos. o livro vermelho. do mao, não do jung. eu não sou uma filha rebelde, alguém que teve que romper com o pensamento dos pais, ou alguém que teve que descobrir sozinha essas coisas. na casa da minha madrinha, num porta-retrato desde sempre, para mim, uma foto de quando ela e minha mãe viajaram em 1989 juntas para cuba. retrato do che na parede. desde criança, odiei a polícia e os militares, sob os ensinamentos dos meus pais.
não foi assim para eles.
meu pai me conta de ser adolescente e usar qualquer dinheiro que minha avó dava a ele para comprar comida ou para passagem de ônibus como reserva para comprar discos. ele me conta que ficava com fome, só comia em casa, e andava muito, muito a pé. cada disco que conseguia comprar, um tesouro. ele gostava de rock. quando lennon morreu, meu pai tinha recém-feitos dezoito anos. ele comprou todas as revistas que podia sobre o assunto. um tempo depois, talvez um pouco mais velho, numa briga que nunca me foi explicada, mas que não precisa, meu avô, para puni-lo, jogou fora tudo, todo o pequeno império que meu pai tinha conseguido com tanto custo: discos, revistas sobre música e músicos, tudo para o lixo. quando eu era criança e estava na sala com ele, ouvindo um disco do the police, meu pai me parava, olhos no tempo, e dizia: numa briga, o pai jogou tudo meu fora. meu pai dizia: o pai não entendia.
eu nunca fui punida dessa forma. desde cedo, como não?, gostei de ler. no natal dos anos 2000, ano em que terminei a alfabetização, meu padrinho me presenteou com o primeiro harry potter. nada de livros com figurinhas. agora você sabe ler e vai ler. meus pais me davam livros. nunca jogaram fora nenhum deles, nem mesmo quando minhas notas na escola ficaram horríveis na adolescência, até porque não era por conta dos livros e sim, das fanfics. não tem como jogar fanfic fora.
engraçado escrever esse texto fazendo essa exposição de privilégio. penso num tweet que li, uma pessoa dizendo do choque ao chegar na universidade e descobrir que os pais de colegas ouviam música e liam livros. eu tinha quatro anos e minha mãe estava fazendo mestrado em saúde pública na ufc. enquanto isso, dois dos seus irmãos eram caminhoneiros, um era gari, a irmã mais velha dona de casa, um trabalhava na prensa do jornal. com cinquenta anos, minha tia fez pedagogia. a segunda das irmãs a ir para a universidade.
leio as ficções, autoficções, relatos autobiográficos de autores que fizeram esse caminho. os que se aproximaram da academia, do mundo da palavra, da leitura. a bell hooks falando que a forma imposta de se lidar com isso é pela assimilação: abandonar esse passado, a origem, passar a se comportar como os que você conhece na academia. a bell hooks dizendo que essa não é a única alternativa. é possível também viver a contradição. trazer a origem para perto. mantê-la no horizonte. tento imaginar meus pais adentrando as salas de aula de suas respectivas universidades a primeira vez. o que eles pensavam, o que sentiam. a necessidade de alcançar o patamar imposto por alguém. a liberdade que vem de se descobrir num novo espaço. minha mãe passou a vida com a família pensando em si como feia. a irmã mais velha era a bonita. na universidade, descobriu que era bonita, que era inteligente, que era interessante. envolveu-se em todos os projetos possíveis. o medo de se descobrir num novo espaço. o medo de falhar e de ter que voltar a origem. o medo de não falhar e nunca voltar a origem. aprender a equilibrar tudo isso. o dinheiro enviado aos pais. a inversão pela qual ambos passaram: não somos mais nós quem dependemos de vocês, são vocês que dependem da gente.
uma vez, no trabalho, recebemos uma autora de vinte anos. sua família estava aqui. pesquisando seu nome no google, encontrei um avô advogado, um tataravô barão. olhar para aquela menina de rosto redondo, tão gentil e tão educada, rica, realmente rica, e pensar que ela descende de um escravocrata numa linha tão contínua e direta. puta que pariu.
o mundo do trabalho. o mundo da leitura. o mundo da leitura como trabalho. meu pai vendia banana quando era criança. eu nunca vendi nada quando era criança. se meus pais apanhavam tanto, quanto os pais deles apanharam também? meu pai, por volta dos quarenta anos, me dizendo que o pai dele não entendia. uma vez, quando eu tinha uns catorze, quinze, estava na casa da minha avó paterna, e estava ouvindo encerramentos de naruto. começou a tocar um e ela ficou parada, do meu lado, ouvindo aquela música em japonês que eu amava tanto. com lágrimas nos olhos, minha avó me disse: que música linda. quando minha avó materna era viva, assistindo novela de tarde e de noite, reclamando para a televisão que a narrativa não estava fazendo sentido. meu pai, na casa dos sessenta anos agora, me contando do seu pai, vendedor de bananas, depois taxista, alcoólatra, violento, mas que gostava de repente. gostava de improvisar, gostava de decorar bons repentes, repetia-os até a exaustão, improvisava. meu pai diz: eu achava que ele não entendia, eu que não entendi.
"que música linda"
ResponderExcluirobrigada por me ajudar a entender