os delírios da beleza

quando eu era adolescente, existia um blog chamado... postsecret? será que ainda existe? meu compromisso com a memória e não com a verdade me faz querer averiguar isso só depois de terminar de escrever esse texto. pois bem, existia, ou existe, um blog com esse nome, em que as pessoas enviavam postais com segredos, ou colagens de postais com segredos. eu lia religiosamente as atualizações, uma época aí. devia ter quinze, dezesseis anos. durante a pandemia, acessei muito um site que agora nem recordo o nome, mas que fazia com que você visse a gravação de alguns minutos, ou horas, da janela de uma pessoa qualquer do mundo. tenho essa coisa com proximidade. e com proximidade anônima. não sei quem são os donos das janelas, pessoas que não posso sequer imaginar o rosto, mas vi as suas vistas por um momentinho, tantas paragens diferentes. no postsecret, o ponto é mesmo ser secreto, mas colocar seu segredo para fora, para todo mundo ler.

eu li muita coisa. muitos, muitos segredos. esqueci de todos, que é a forma mais segura de se manter algo secreto. na realidade, eu só lembro de um. as palavras exatas me escapam, mas era mais ou menos assim, em tradução livríssima daquilo que nem sei precisar: tenho medo de emagrecer e descobrir que não é por eu ser gorda que ninguém gosta de mim. 

ler isso e sentir um soco no estômago. ler isso e saber que essas palavras nunca parariam de me assombrar. ler isso e estar agora mesmo escrevendo sobre essa porra que eu li há tanto, tanto tempo atrás. tanto, tanto tempo atrás, eu nem era gorda. o que quer dizer que eu era gorda, pois fui criança e adolescente nos anos 2000 e 2010 e usar 42/44 já era ser imensamente gorda, baleia etc. etc., aquela ladainha toda. meus pais eram preocupadíssimos com a minha saúde, porque eu era gorda. uma criança gorda. uma menina de um metro e setenta e quatro centímetros e setenta e cinco quilos. imensamente gorda. 

às vezes, eu digo na internet coisas como: se eu fosse bonita nada disso estaria acontecendo. ou: ah, imagina ser bonita. ou qualquer ladainha tola do tipo. é mentira, claro! eu sou bonita, sinto informar. o pensamento real é: se eu fosse magra, complete a lacuna. isso me enlouquece. pensar em ser magra. uma vida inteira pensando em ser magra. até quando eu era magra. quer dizer, acho que nos termos de 2024, eu era midsize. risos. mas bem, deu pra entender.

é realmente enlouquecedor. o tanto de pensamento gasto nisso. olhar para as minhas amigas magras e ouvir delas que ainda não é suficiente, saber que muitas delas pensam que não é suficiente ainda. fico maluca. escrevi outro dia um texto que provavelmente expressa essas mesmas coisas de um jeito menos desse-jeito-que-está-sendo-agora. mas no fundo é algo bem parecido. porque isso me atormenta diariamente. e eu me sinto estúpida, ridícula, e mais do que tudo isso, cansada. cansada de tanta vida gasta pensando sobre ser magra. puta que pariu. 

eu sinto muito tesão. essa frase parece mal colocada aqui. mas eu tenho um tesão absurdo, mesmo, acho até engraçado, eu sou uma dessas mulheres cis que produz um pouquinho de testosterona além da conta, mas ainda assim é um número bem abaixo das linhas de referência de testosterona de um corpo que é meio que voltado para produzi-la. então eu fico: caraca. uau. imagine ter uma grande quantidade de testosterona no sangue, o que é que faz com você. daí o que me aconteceu na virada da adolescência pra vida adulta foi pensar: meu deus! eu sou gorda, mas tenho muito tesão, então preciso resolver como vai ficar essa questão, visto que ninguém jamais irá me desejar porque eu sou gorda. 

então eu tive que aprender a ser gostosa e desejável sendo gorda. no geral, acho que aprendi. e ao mesmo tempo, acho que nunca aprendi. porque ainda assim penso constantemente: se eu fosse magra, preencha a lacuna. e aí volto àquele postsecret da adolescência. medo de emagrecer e descobrir que o problema era outro. mas a essa altura, eu já acho que nunca vou emagrecer, mesmo. a não ser que eu faça uma bariátrica, que é um pensamento que eu considero absurdo, porque meu corpo é muito saudável (carece de fontes, faz mais de seis meses que fiz exame de sangue, mas posso corrigir para: da última vez que averiguei, meu corpo era bastante saudável), eu faço exercício etc etc etc. tem aparecido muito pra mim conteúdo de bariátrica. e aí parece que meu cérebro chega a salivar: imagine só, a possibilidade de ficar magra. imagine voltar a pesar setenta e cinco quilos. 

penso no período imediatamente após meu término, quase um ano atrás, em que não só eu não conseguia comer, como eu constantemente vomitava pelas manhãs. lembro de pular mais um almoço e pensar: ah, pelo menos agora eu devo emagrecer algo! e sinto um profundo ódio. 

de alguma forma, tudo isso me parece tão exagerado. eu sou gorda, mas também faço com que pessoas que veem a palavra gorda como xingamento ainda me digam que calma, não é assim... é que eu sou forte ou cheinha. eu ainda consigo comprar roupa em loja de departamento (no limite do número 48), eu não pego assento preferencial etc. constantemente sinto que estou exagerando e sofrendo à toa sobre quase tudo. e aí eu penso em passar a infância inteira ouvindo sobre ser gorda, a adolescência inteira nessa mesma ladainha e só não o tempo todo da vida adulta porque enfim. agora pega mais ou menos mal (já pegou mais mal, mas voltamos ao culto do transtorno alimentar disfarçado de cuidados com a saúde).

eu quero tanto ser magra. se eu fosse magra, seria tudo diferente. eu quero tanto parar de querer ser magra. puta que pariu, eu já sou bonita o suficiente sem isso. se eu fosse magra, com certeza beijaria na boca todo dia. vai se foder, criatura, para de delirar isso tudo. se eu fosse magra, nenhuma roupa jamais me faria sofrer. até parece que você nunca leu um tweet de uma menina magra pra achar que isso é verdade. mas deve ser porque são magras de nascença! eu, como uma gorda de nascença, saberia valorizar imensamente ser magra. não sou magra, nunca serei magra, não posso querer ser magra, à parte isso etc. uma montanha-russa. um carrossel. alguma metáfora de brinquedo de parque repetitivo, constante e enlouquecedor. 

escrevi "os delírios da beleza" como título antes de começar a escrever. obviamente, talvez o certo fosse os delírios da magreza. um monte de mentiras, ou coisas que quero crer como mentiras, sobre o universo em que eu sou magra. como pode um desejo tão ridículo. um desejo tão ridículo quando eu já sei que sou bonita. queria que fosse suficiente saber disso e não ficar pensando: mas só eu sei disso e mais ninguém, ou: quem também sabe disso é porque já gosta de mim, ou: eu queria ser bonita do jeito óbvio, em que pessoas na rua te identificam como bonita, mas isso nunca vai acontecer, porque eu não sou magra. 

pelo amor de deus. vai dormir. isso tudo é imensamente cansativo e eu nem consigo imaginar que alguém tenha chegado até essa frase. se chegou, sinto muito e obrigada. um beijo. vai passar. 


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