sim, eu estou tão cansado, mas não pra dizer

a professora que eu amo diz: contrariando o tempo dos professores, você deveria sentar e escrever sobre isso. 

isso. enquanto isso é agora. ela me disse que no agora dela, professora universitária, aqueles primeiros anos ganharam a pintura do tempo. nada é como é agora. eu dei uma semana de aula e só penso, falo e respiro isso. eu preciso registrar isso enquanto é assim. talvez daqui a um mês já não seja mais. como é possível que em uma semana as coisas pareçam tantas coisas. deve ser porque eu estou começando agora. as novidades são todas. 

hoje é domingo à noite, horário oficial de roer o braço. na minha mesa, além do computador, estão as redações corrigidas dos oitavos c, d e f. estão também o caderno em que anoto as aulas, o livro didático fornecido pela escola, o desenho que um aluno me deu (uma morte skatista), um pacote de 500g de café santa clara para levar para a sala dos professores e ter direito de beber café no mês de novembro. um pincel novo que eu comprei ontem. um caneta vermelha que eu comprei ontem, pra corrigir as redações. as listas de chamada de cada turma. meu deus, faz só uma semana que eu comecei a dar aula. deve ser por isso que tudo parece demais. (repito, como mantra)

dar aula é esquisito. animador e exaustivo. não dá pra entender. a literatura não me preparou para nada. ler livros sobre professores (não que sejam tantos assim os que li), ver filmes sobre professores (esses já foram mais), viver meus delírios de ser professora (nos meus delírios, tudo funciona no fim). o riobaldo dizendo: como vou contar e o senhor sentir em meu estado? o senhor nasceu lá? o senhor mordeu aquilo? o senhor conheceu diadorim, meu senhor? (eu ia cortar a citação ali, no estado, mas eu não consigo mutilá-la como mutilei o jards no título, até onde me fazia sentido. eu não estou cansado pra dizer, ponto final). como vou contar e você sentir em meus estado? a única brecha possível de leitura é você também ser professor, e aí talvez você ria de mim, professora de uma semana, falando: meu deus, e você já pensou tudo isso com tão pouco tempo de sala de aula?

mas ao mesmo tempo, acho que você entenderia, caso não tenha se esquecido de como foi começar. eu preciso descrever a situação: das sete e meia até o meio-dia e meia, cinco horas pelas manhãs, com dois intervalos de quinze minutos. então são quatro horas e meia interagindo, o tempo todo, com mais ou menos umas vinte pessoinhas que não param um instante só. eu ainda tenho a sorte de salas com vinte, e não trinta ou quarenta alunos. na sexta-feira, após chegar da aula, sem nenhum afazer pela tarde na escola, eu apaguei. devo dizer que dormir de tarde é muito difícil, para mim. muitos domingos foram gastos em vão tentando tirar um cochilo de tarde. eu apaguei, por horas, a tarde inteira, quatro horas dormindo, acordando confusa e pensando que precisava ficar desperta, sem conseguir. 

bom, claro. na quarta e na quinta eu dei aula de manhã, tive coordenação pedagógica de tarde e participei de dois eventos na livraria (minha despedida!) de noite. e na sexta de manhã, dia primeiro de novembro, minha chave de sala sumiu. o que me levou a uma grande crise de choro dentro da escola. fui narrar esse acontecimento para a professora que eu amo e outros dois amigos, todos nós alunos dela, também professores de escola. um, professor de matemática querendo ir pro português, ria, ria da minha descrição da cena de eu, lágrimas escorrendo pelo rosto vermelho, escrevendo a palavra VOCATIVO no quadro com um silêncio sepulcral atrás de mim, e me dando conta de que a tinta do pincel que a escola me deu estava acabando. ele ria e dizia: é muito triste! eu não queria rir!, e a professora que eu amo, que me conhece como me conhece, dizendo mas é isso, apontando para mim. mas é isso. é de chorar e de fazer piada. é muito engraçado e muito triste chorar na escola. 

devo estar dizendo isso, também, porque só tenho uma semana de aula. existem muitas experiências muito, muito piores. a humilhação que vem pelos alunos, a humilhação que vem pela direção. espero que quem quer que esteja se dispondo a ler isso se lembre de que esse é um relato pessoal e transferível apenas nas partes que cabe, o que for pior ou o que for melhor do que isso existe, mas ainda não existiu para mim.

no meu primeiro dia de aula, me dei conta de como gramática é um saco. eu quero que eles se importem com algo que eu não me importo? eu preciso me importar para que eles se importem. ou: eu preciso falar do que me importa (literatura, coitados, sempre essa mesma ladainha, ah, a literatura). eu preciso que eles saibam escrever um texto, e eu sei que o que precisa para se escrever um texto é de algo que não está na gramática. mas nada contra. tenho amigos que amam.

no meu primeiro dia de aula, uma outra sexta-feira, em uma turma que eu achava que estava tudo indo bem, um aluno fez uma piadinha sexual comigo, achando que eu não estava vendo, e passou pelo constrangedor momento de se dar conta que ninguém estava rindo e que estavam todos olhando apavorados a professora que observava. em o avesso da pele, o filho do henrique narra o momento em que o pai se deparou com um aluno bolando um baseado dentro da sala. nessa hora, o henrique pensa que tem o tempo de atravessar a sala pra tomar uma atitude e tem que ser a atitude certa, se não ele perde toda a turma. talvez esse seja o grande momento do livro. essa descrição perfeita. você tem que tomar a atitude certa, se não você perde toda a turma. e é o tempo inteiro. me senti um personagem dizendo para eles, muito séria, eu não sou colega de sala de vocês, eu não sou amiga de vocês. eu sou a professora de vocês. essas palavras estavam saindo mesmo da minha boca? e o aluno, envergonhado, pedindo desculpas imediatamente, e passando o resto da aula tentando se redimir. que coisa maluca.

uma aula ruim é algo estranhamente deprimente. uma aula boa é um negócio extático. elas acontecem no mesmo dia. uma seguida da outra. você não tem tempo de pausa: já tem uma nova turma para falar com. são cinco aulas de português na semana, meu deus, eu não tenho tanta coisa assim pra dizer a vocês que vá cair na prova, que é o que vocês querem saber. podemos conversar? quis conversar muito com meus alunos. eles são malucos e insuportáveis. eles são engraçadíssimos. alguns são doces. outros são muito carentes, quase todos, de ouvidos adultos. ao menos, é o que parece. uma turma me fez chorar. a turma seguinte se esforçou pra me deixar feliz. ficaram quietinhos. como é que pode?

já falei que eles não param de falar? claro, tem uns que param. li um conto para eles na aula. no meio dos que dormiam e dos que mexiam em seus celulares, tinham aqueles que estavam olhando pra mim. atentamente. ouvindo uma história. ouvindo uma história! na sexta que eu chorei, antes de eu chorar, falei com quase todas as turmas (menos a responsável pelo meu choro): eu quero que isso seja legal. se você não quer prestar atenção, eu não vou reclamar. eu só peço silêncio. aos que quiserem, por acaso, estarei dando aula aqui. eles riram. um menino dormindo brigou com um menino que estava no celular fazendo barulho, dizendo cara! a professora pediu silêncio!. achei isso engraçadíssimo. vamos manter um acordo. 

uma aluna falou pra mim que adorava ler romances dark. treze anos e um monte de putaria no aplicativo do kindle. lembrei de mim com treze anos lendo um monte de putaria em fanfic. uma outra aluna me falou que adorava ler romances. pedi para ela me dizer algum, esperando algo parecido. ela me deixa completamente sem palavras ao responder que está lendo e amando: senhora. sim. do josé de alencar. fiquei estarrecida. quase disse: grava aqui um vídeo pra tia mandar pro felipe neto, meu bem. mas o que é senhora se não um prenúncio de um romance de putaria bem gostoso no futuro? 

os alunos são surpreendentes. o tempo todo, coisas pra fazer. umas horas eu pensando: meu deus, eu preciso mesmo responder tudo? ensinando vocativo, e ouvindo o tempo todo: professora, professora, professora, professora!, coloquei de exemplo, eles riram. nessa frase aqui, qual o vocativo? "professora, posso ouvir música na aula?", "professora, posso assistir it?", "professora, você é solteira?", "professora, precisa copiar o que está no quadro?". criaturas malucas. eu maluco. um aluno me disse: é que a gente é doido, professora!. eu, que não posso perder meu tempo tentando conquistá-los do jeito errado, viro com um sorriso e digo: mas eu sou mais!. 

Comentários

  1. Parabéns pela nova etapa. Ficará mais fácil a cada dia, apesar das novidades. Se preserve, e busque sempre aprender com tudo.

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  2. O 'professor de matemática querendo ir pro português' está aqui com um sorriso no rosto e um olhar marejado depois de ler o seu texto. É incrível como a gente deixa de pensar, mas nunca esquece de verdade... A escola e a sala de aula são sempre uma grande loucura, que às vezes nos levam a esquecer do ontem ou do hoje mais cedo... Mas nunca nos impedem de sentir!! Sua prosa é deliciosa. E acompanhar sua jornada até aqui foi um presente. Pra você não desesperar: MELHORA!! Mas no fundo, no fundo, nunca deixa de ser exatamente assim.

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