meu amigo pedro me enviou um poema do frank o'hara como consolo por eu falar tanto das mesmas coisas o tempo todo. eu posso ser perdoada por isso? fico pensando que devo soar, ou pior: ser, egocêntrica que nem a carrie, escrevendo sua coluna a partir de sua experiência e da experiência de suas amigas. eu devo ter feito umas cinco vezes um tweet dizendo que queria ser a annie ernaux cearense. eu sou viciada em mim mesma? na minha própria experiência? nos meus acontecimentos? em pensar e pensar e pensar sobre essas coisas; as coisas que estão ocorrendo comigo. eu sinto tanta falta da pura ficção. de ser adolescente e me entregar à escrita de fanfics, exercício de imaginação, brincar de casinha de bonecas com as bonecas que outras pessoas tinham confeccionado. sinto saudade da ficção. mas ao mesmo tempo, eu gosto, gosto mesmo, de falar assim. num espaço entre. limiares. isso aqui não é ficção, eu estou escrevendo no meu blog, mas existe algo de imaginativo, não sei dizer o que. essa voz, esse jeito. sou eu, mas num recorte tão específico. ou sou simplesmente eu.
hoje é dia primeiro de janeiro de dois mil e vinte e cinco. isso deve ser algo a se notar. no dia trinta de novembro de dois mil e vinte e quatro, minha cãzinha morreu. é estranho o longo lamento sobre isso? ela ia fazer quinze anos no dia dezesseis de dezembro. o que eu estava esperando mais? que um animal que vive em média esse tempo mesmo me acompanhasse por mais quinze anos? eu não estava esperando que ela morresse. eu não estava esperando que ela morresse assim: depois de uma rápida sedação para tirar os pontos de uma cirurgia muito mais complexa que havia sido um sucesso um mês antes. assim: na clínica veterinária, às três e meia da manhã, longe de casa. um dia, dentro de casa, eu iria acordar e ela teria morrido. ou ela estaria caminhando para fazer xixi, ou ir comer, ou só andando pelos corredores, teria um súbito mal, despencaria. ou então iria tomar um banho de sol e ficar lá, serenamente, até nos darmos conta que o único calor vinha da luz no seu pelo. ela morreu sozinha lá, ao lado de gente estranha, com um ar-condicionado gelado, odiando cada segundo longe de casa. como eu sinto falta dela.
eu fiz trinta anos no dia doze de novembro de dois mil e vinte e quatro. fico pensando que terei de viver até, pelo menos, os quarenta e cinco para ter plena noção do que são viver quinze anos sem ela. é muito tempo.
passei a virada de ano com amigos queridos daqui. acho que foi uma das mais divertidas que já tive em brasília. eu gosto tanto dos meus amigos. eu amo os meus amigos, claro, mas eu gosto imensamente deles. constantemente sou pega de surpresa pela minha própria sorte: é normal conhecer tanta gente boa assim no mundo? chega a ser engraçado, falo de amigos para outros amigos e eles exclamam: meu deus, você tem amigos demais. é engraçado porque é absurdo, porque eu passei a infância solitariamente alugando todos os livros da biblioteca da escola porque não tinha com quem conversar; porque assim que eu mudei para brasília foram anos e anos para que eu conseguisse fazer uma amizade aqui e daqui que parecesse fazer total sentido comigo.
desde muito pequena eu soube que gostaria de escrever. tudo começou com a fatídica redação escrita aos seis anos de idade que minha professora quis enviar para tentar publicá-la no diário do nordeste. essa alegria se espalhou pelo tempo, pelo resto da vida inteira, como uma coisa, a coisa, o que eu queria fazer. eu tinha diários, e eu mentia nos diários, porque queria que os acontecimentos fossem mais parecidos com os dos livros que eu lia, livros cheios de paqueras e gatinhos e "fala sério". quando eu cresci (ou seja, quando fui dos dez para os dezesseis anos), não interessava mais mentir em diários, mas interessava escrevê-los como coisas interessantes, como algo que outra pessoa pudesse se divertir lendo. vou culpar a professora por ter me colocado para escrever com a ideia de que haveria alguém lendo. mesmo as coisas que só me interessam. que são as minhas coisas. que não tem nem o poder encantatório da ficção.
bom. a redação era um exercício de ficção. então talvez a culpa tenha sido minha, eu mesma me desvirtuei.
escrever em blogs desde os catorze anos também foi algo. nos blogs, eu podia escrever de mim. nas fanfics, eu podia escrever das outras coisas. eu devia voltar para as fanfics, que começaram aos onze anos. ou deveria voltar às outras coisas. enquanto não volto a elas, fico com o blog, e falar de mim. um exercício de estudo do que me cerca, do que acontece. um exercício de estudo de mim mesma. que objeto mais trágico e traiçoeiro. e, pior, bobo.
sinto que na adolescência fui tão violenta. as brigas com os amigos. discussões enormes. ficava chateada com as coisas, chorava e arranhava meus braços. tinha impulsos de violência física: eu e meu querido amigo átila brigando na escola, lembro de bater nele, não lembro o motivo, e eu o amava tanto. olho para isso e penso: como? mas o desejo de violência existe, eu acho que quase como uma saudade. há um tempinho, escrevi aqui sobre o desejo de ser monstruosa, de poder me tornar um monstro. deve ser a falta da crueldade que eu me permitia ali, na adolescência. a crueldade comigo mesma, a crueldade com os outros. e ainda assim, leio o que eu escrevia na época, lembro de acontecimentos e penso: eu era tão doce. todas essas coisas conviviam.
a crueldade só dorme? por vezes, sinto o desejo de ser cruel, mas não sei como, ou talvez saiba sim, saiba muito bem como e não consiga. meu amigo bernardo dizendo que eu podia apertar o pescoço dele, e eu sem conseguir. uma trava de segurança. quero ser violenta, tenho medo de ser violenta e não parar. eu acho que as coisas funcionam em todas as direções. eu já disse isso? devo ter dito, é sempre uma repetição: então se eu tenho muita força para ser amável e gentil, eu devo ter a força no outro sentido também. muita, muita força para ser cruel, e um medo absurdo de sê-lo.
eu sinto muito amor. fico pensando, querendo justificar, que tudo isso começou em novembro de 2020, quando vi um alma-de-gato pela primeira vez, quando pensei nos pássaros pela primeira vez com atenção. antes disso, vivia dizendo na internet que queria ser uma árvore. porque elas são bonitas, porque elas são interessantes, porque elas são vivas de um jeito absolutamente diferente. mas ver aquele pássaro me fez ver os pássaros, e ver os pássaros me fez ver os calangos, e ver os calangos me fez ver as pedras, e ver as pedras me fez ver a terra, e o solo, e os fungos, e de novo: as árvores. os pássaros. mas isso já não estava cifrado em mim? quando criança, amava assistir documentários do reino animal, o meu sonho de trabalho era esse: ser documentarista do reino animal. eu descia do meu prédio carregando uma prancheta e anotando as coisas que via. meu amigo gabriel citou bento santiago em uma de nossas conversas, me disse que estava atando as duas pontas da vida. o bentinho não consegue restaurar na velhice a adolescência. eu estou restaurando a infância? aprendendo de novo aquilo que eu já sabia, e já sabia que era bom, e tinha esquecido. e agora eu lembrei. é bom. é bom.
às vezes, penso: tanta ternura vai me matar. claro, não vai. mas é quase isso. dá uma sensação parecida. o último homem que beijei estava muito triste, justificadamente, com questões da vida dele. lindos olhos, e embaçados de tristeza. senti tudo muito sério, os beijos, as mãos, tão quieto, tão sério, não queria nem respirar alto. só conseguia pensar: queria gravar isso, esse olhar de tristeza tão pura e tão digna, tão longe de qualquer coitadismo, apenas lá, como um fato real, puro. tristeza, nem feia nem bonita, apenas ela, e ainda assim, ele era tão doce e tão gentil. talvez por isso tenha me enternecido tanto, a tristeza no olhar convivendo com a delicadeza dos gestos. a simone weil escreveu que as pessoas tentam transmitir aquilo que sentem, alguém muito magoado machuca um animal ou uma criança porque são indefesos. a violência da adolescência não era isso? e me deparar com a dor que não quer ser transmitida, não assim, não como dor, e que é passada adiante como um beijo no joelho.
acontece de quando estou triste, minha amiga rafaela olha para mim e diz: você está tão tristinha!, e indica os meus olhos, ainda que eu esteja sorrindo e fazendo graça. sempre que ela diz isso, sinto imenso carinho por ela. pelo olhar atento dela. penso que é isso que eu quero, que é o que eu mais quero, que é o que importa: olhar para as coisas atentamente. acho que me comove que meus amigos sejam assim. pessoas que olham para as coisas. cada um do seu jeito, e cada um fará uma coisa distinta com a mesma informação. mas todos prestam atenção. escrevi isso e soltei um suspiro alto, e comecei a rir da minha cara molhada de lágrimas. eu gosto tanto dessas pessoas. sentada ao lado da minha amiga marina, dez anos de estrada brasiliense juntas, ela vai se mudar para o exterior esse ano, olhando-a fumar e pensando: caramba, como já foram dez anos? como é que essa companhia eterna, de horas sentadas em cafés, vai para o outro lado desse continente? e ainda assim, tão feliz porque isso fará bem para ela. amar as pessoas, e amá-las perto e longe. amar até a despedida delas.
agora que eu tenho trinta anos, penso: quando eu tinha vinte anos, escrevi que meu coração era um museu. sempre voltado para trás. uma nostalgia que nunca fez sentido. me sinto longe da nostalgia. ou vivo a nostalgia do agora. parece que descobri, nos últimos anos, que tem tanta coisa bonita pra acontecer ainda. tanta coisa bonita que aconteceu. há muito tempo atrás, em dezembro de dois mil e onze, eu estava sentada na praia de noite com minha amiga mercúrio. ela era da internet e tinha ido me visitar em fortaleza. hoje eu nem a chamo de amiga da internet: ela está junto com os meus amigos de adolescência, infância tardia. tantos passinhos dado juntas e de longe. tanta coisa bonita que aconteceu. e tanta coisa triste também. e vai ser assim, sempre, essas ondas da vida: o ruim e o bom, misturado, junto, a angústia do riobaldo que esse mundo seja tão misturado, que não dê para colocar o bem e o mal de lados opostos. você está vivendo, e é bonito, e dói. abrir o coração e mirar e ver.
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