ternura, parte dois

durante três dias, estive apaixonada por um homem que iria embora. 

ir embora, talvez, seja o de menos. ladainha: de uma forma ou de outra, todos vamos embora. a aposta do amor é uma brincadeira com a morte – a morte do próprio amor, a morte do amante. durante três dias, estive apaixonada por um homem que iria embora. durante três dias, venci a aposta. durante três dias, envolto pelo meu amor, esse homem jamais poderia partir. 

do outro lado da mesa de um café, o homem que amei por três dias me olhava com seus olhos nublados. nos conhecíamos há dez anos e estávamos nos conhecendo naquele exato momento. minha palavras eram derramadas entre nós com algum nervosismo, nervosismo atípico: não éramos novidade um para o outro, e éramos, e tudo era novo e só agora eu entendia a força daqueles imensos olhos cheios de tristeza. o homem que amei por três dias me sorriu e afagou-me o braço, entrelaçando suas palavras às minhas. senti que amaria o homem que iria embora: três dias, três vezes para sempre. 

o homem, com seus três dias marcados a ferro no semblante, me deitou em sua cama e me despiu com gentileza impossível. em silêncio diante de sua calma, transformei-me em outra: quieta e suave. recebi seus presentes com gravidade atípica: beijou-me os cabelos e as têmporas, um sussurro, um farfalhar. beijou-me os olhos e as bochechas. a boca sobre a minha era o murmúrio dos pássaros pulando entre as folhas das árvores. era preciso memorizar sua mão, a textura de sua pele, o formato de seus dentes, a maciez dos seus lábios. era preciso guardar bem guardada a imagem de seu rosto acima do meu, olhos cerrados, uma expressão séria, séria. colei minha boca ao seu ombro, era preciso saber seu suor. o homem por quem estive apaixonada deixou uma série de palavras largadas no escuro, elas rolaram de sua língua e descansaram no leito do meu corpo. o homem por quem estive apaixonada beijou-me o colo e as axilas, os braços e os peitos, as palmas das mãos e o interior das coxas. seus dedos afagavam tornozelos e pulsos, afundavam na cintura e no quadril. dentro de mim, eu também estava dentro dele. sua delicadeza e sua doçura dançavam com sua tristeza. e comigo. 

com o homem que iria embora, o mundo se desfazia na falta de promessas. eu ansiava por uma mentira, uma mancha, um pouco menos de clareza. a opacidade ofereceria um conforto que depois, só depois, poderia me arrebentar. não: estar com ele era estar com o relógio. pus as mãos sobre seus olhos e desejei um milagre mesquinho – quando as retirasse, minha imagem iluminaria suas retinas da mesma forma que sua partida iluminava nossos passos, e ele decidiria ficar. o homem por quem estive apaixonada aguardou com paciência enquanto eu negociava com deus sua permanência. imóvel, parecia prestes a sorrir. quando o libertei outra vez, nada. epifania alguma. talvez a lama fosse parte crucial para o milagre da visão e me faltaria sempre a disposição de sujá-lo. 

o homem por quem estive apaixonada. o homem por quem me apaixonei. o homem que amei. o homem dos três dias. o homem que iria embora. o homem e sua mão na minha panturrilha. o homem e sua risada embriagada. o homem e seu silêncio. o homem e meu silêncio. coloquei-me diante dele com o coração em chamas. queria oferecer não o incêndio, mas o fogo de héstia. eu quero, eu quis. durante três dias, estive apaixonada por um homem irredutível em seu intento de partir. durante três dias. durante três dias. retirei um livro de minha prateleira, coloquei-o em suas mãos. uma lembrança de que eu havia existido, poemas marcados pela ponta do meu lápis, leve com você isso que não sou eu, mas que carrega um pouco do que eu sou. um mimo pelo avesso – é impossível tornar-se presente para quem irá embora. aceitando-o, era eu a presenteada: um suspiro aliviado de que haveria com ele algo que outrora fora meu.

após três dias, o homem por quem estive apaixonada foi embora. na minha casa, tremi e suei trinta e nove graus de febre madrugada adentro. não nos falamos mais. 

(para a parte um, aqui)

o reino dos sonhos

gosto muito que exista a expressão reino dos sonhos. que seja uma expressão consolidada. o reino. esse local que quem manda não é mais a realidade. isso é tudo muito bonito. vamos aos sonhos. 

um sonho de outra pessoa: minha amiga chora a perda de um grande amor, do seu grande amor, enquanto limpa o pus da boca de outra menina. imagine o pus, as lágrimas, o duplo choro: o da ferida na alma, o da ferida no corpo. essa outra menina é um desconhecida, ou conhecidos de sonhos, que são outro gênero de colegas que fazemos ao longo da vida. o amor é o amor do real, que escapa para o onírico; lembro que quando eu namorava, vivia sonhando com meu namorado, dormíamos lado a lado e eu ainda o encontrava nos sonhos. um sonho é uma porta, um reino, a boca inflamada de alguém que você não conhece, mas que você vai limpar mesmo assim, porque é o que é preciso e o que faz sentido. 

um sonho erótico: estou boiando em um lago. gosto muito de corpos de água, grandes corpos de água. rios, lagos, mares, açudes. meus sonhos têm muita água. estou boiando em um lago, tem sol, mas não muito, uma agitação e vem um crocodilo até mim, abocanha meu pulso, quase com ternura. acordo com a sensação. penso: foi um sonho erótico. sinto dificuldade de explicar para as pessoas, e não quero transformar isso em uma piada sobre scalies. não é pelo crocodilo em si, que não é humanizado. é a mordida do perigo tão singelamente dada em um momento de distração. repito: estou na água, tranquila. um crocodilo, tranquilo. meu pulso disposto para se tornar alimento. sou mordida, e não dói. 

um sonho cômico: carregando um filhote de bem-te-vi nas minhas mãos, desço dezenas de lances de escada, apavorada, não posso machucar o filhote e existem dois linces que me seguem nos degraus. eu só um pouco adiantada. isso tudo é treinamento dos correios. outro: sonho que estou numa consulta online com um psiquiatra que não abre sua câmera, insisto para que ele abra a câmera; quando ele enfim cede e se revela para mim, ele é um hamster.

gosto da lógica dos sonhos. as coisas são. ninguém precisa me dizer que o que eu estou fazendo faz parte do treinamento dos correios, eu apenas sei que é isso. eu apenas sei, em um sonho, quando estou com um amigo, quando estou com um amante, quando estou em perigo. as sensações todas redondinhas no peito. os ambientes mudam e tudo faz sentido. um sonho é feito de cortes. eu estou na minha casa, que não é a minha casa, e a minha casa é simultaneamente a escola, e tudo isso faz perfeito sentido. narrar um sonho é fazer uma porção de escolhas, canalizar a atenção. o mesmo que narrar um acontecimento do dia acordado. é possível dar conta de tudo? não.

sonhos com animais: estou sentada na areia, olhando o mar bravo, ao meu redor, centenas de leões estão adormecidos. estou sentada na areia, olhando o mar tranquilo, e de suas ondas saem muitos e enormes lagartos furta-cor, um deles se deita no meu colo enquanto eu tento ler o elegia 1938. estou dirigindo meu carro e no banco do passageiro, bêbado, está o hozier, com um cisne no colo. estou em uma casa tomada pela vegetação e por lobos, e os lobos me conhecem e estão preocupados comigo. estou olhando uma coruja através de grades, ela arranca as grades e me dá um recado, que eu esqueci. estou andando pela w3, descalça e de camisola, cheia de terra vermelha nos pés, e um passarinho se prende em meu cabelo. estou em uma brasília inundada, com água até a cintura, vejo uma cobra dar o bote em uma paca, surge uma onça e come a cobra, um urubu me dá um rasante, e chove, chove, chove. 

eu sempre sonhei demais. nunca achei que era demais, na realidade. todos os dias na escola chegava com sonhos novos para os meus amigos. todos os dias acordo com sonhos novos se dissipando por trás dos meus olhos. alguns valem algumas palavras, outros, não. sonho com beijar a boca de gente que nunca pensei em beijar a boca, e agora quero beijá-las. sonho com beijar a  boca de gente que desejo beijar a boca, e desejo ainda mais. sonho com estar perto de gente estranha que não é estranha, são meus amigos. sonho com meus amigos. sonho com a minha cã. depois de morta, ela ainda é minha? sonho com a cã e acordo com a agudeza da saudade. sonho com músicas. sonho com uma mesa de pessoas cantando clube da esquina. sonho com o paul em um bar, querendo puxar um coro de hey jude. sonho com sons de carrilhões. sonho com uma música que nunca ouvi.

sonho com fumar maconha (eu não fumo maconha!) e conversar com uma onça. sonho que estou tentando paquerar um rapaz que só quer dar um trago na sua maconha. quando li grande sertão, sonhei com o diabo na rua, no meio de um redemoinho. sonhei que estava lendo os miseráveis muitos meses depois de terminar a leitura. sonhei que estava lendo detetives selvagens no dia em que comecei a lê-lo e decidi que não iria continuar a leitura, porque ia me obcecar. sonhei que lia um conto inédito do machado. sonhei que lia um romance perdido do drummond. sonhei com uma edição de moby dick com as páginas pintadas de forma a simular o movimento do mar. sonhei que estava numa festa com o antonio candido, e ele cantava um funk. sonhei com o peter capaldi jovem, ele era meu namorado e morávamos em sobral. sonho, sonhei.

não existe final para esse texto. ele acaba abruptamente, como acordar. 

uma texto de ficção ou paixão simples, parte dois

 "queria a todo custo me lembrar do corpo dele, dos fios de cabelo aos dedos dos pés. conseguia ver, com precisão, os olhos verdes, a mecha balançando sobre a testa, a curva dos ombros. sentia os dentes, a parte interna de sua boca, a forma de suas coxas, a textura da pele. pensava que era muito estreito o limiar entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória e a loucura."

entre a memória e a loucura. queimo a sola dos sapatos evitando voltar para casa, na rua por dezoito horas, o tempo inteiro sua imagem na janela. ou: estou preso há anos na mesma praia, olhando para o mar, chorando todas as tardes desejando um retorno impossível. ou: a memória dos seus olhos se erguendo do livro que lemos juntos, sua boca cansada de hesitar sobre a minha e agora aqui, atada para sempre a você no redemoinho da nossa luxúria. beijar a boca de tão perfeito amante. respira perto de mim um pouquinho, quero lembrar do que pode ser muito bonito. você me dá adeus e eu sorrio e suspiro para o céu: por favor, deixa eu ficar com esse. 

sentir tanto assim é uma dádiva, ela me diz. ela também me diz como é bonito ver meu rosto aceso em olhos brilhantes e um sorriso cheio de dentes. sorrindo com todos os dentes, aperto-os, tentando manter algo dentro da boca: mais do que a língua que deseja falar e lamber, mais do que o coração que deseja viajar, é uma coisa, uma outra coisa. memória ou loucura? lembro e travo os dentes, tensamente feliz. imagino, alucino, preciso conter algo que aponto como um monstrinho, criaturinha cheia de espinhos e ainda assim tão amável que você só pensa em apertá-la. que importa uma ferida ou duas, quatro cinco ou cem cortes diante desse abraço impossível de descrever? como vou contar e você sentir em meu estado? mas você vai sentir, você já sabe, ou pode imaginar saber.

aos treze anos de idade, rabiscando uma carta para ser entregue, sob um falso véu de anonimato, para um rapaz de outra sala. derramando os sentimentos. ela me diz: a gente gosta de romance, a gente gosta de coisas bonitas acontecendo, a gente gosta de histórias mirabolantes. uma história mirabolante em cima da outra. ela sai andando por salvador, doida e desembestada, com o celular na mão procurando aquela com quem viria a se casar, mas com quem não tinha ainda trocado nenhuma palavra. algumas vezes, a loucura não só será perdoada: toda loucura será compensada. faça alguma coisa, faça qualquer coisa. o que é de chorar às vezes também é de sorrir. 

eu gosto de você..., sussurro? digo? sorrio, envergonhada, a mão no seu cabelo. sinto vontade de repetir: eu gosto de você. até mesmo: eu gosto de você!, ou então: eu gosto de você? com uma interrogação que não é realmente dúvida, é mais surpresa diante da constatação. posso gostar? não, claro que não, o tempo é curto e é errado; e ainda assim, gosto, um sorriso cheio de dentes, gosto de você e gosto do quanto poderia gostar de você. gosto do que é, gosto do potencial e até mesmo gosto do nada que resta, um nada colorido e cheio de vultos. quero gastar o meu gosto, amolar essa faca até que de tão certeira baste a ideia para executar o corte. o utinam a nostro secedere corpore possem. deixa eu olhar para o seu rosto só uma vez mais. que olhinhos mais bonitos que você tem. 

entre a memória e loucura. durante meses estive acompanhada por uma assombração. o cheiro estava em tudo o que eu tocava, e ela morava no canto do meu olho, inescapavelmente. as assombrações vão passar? a constatação é a de sempre, e é terrível: o fantasma sou eu. a terrível ferida não tarda a cicatrizar. é mentira, claro. a ferida está aí, aberta, orgulhosamente levada no peito. paro para respirar. meus olhos ardem, quentes, e o corpo todo quente junto, coloco as mãos docemente atrás dos meus joelhos e sinto quentes, quentes, quentes. estou com febre e começo a rir, tudo pode sempre ser tão divertido entre a memória e a loucura. a pele arde como o coração que está incendiado e eu constato que meu problema no mundo não é ser exatamente assim, é que ser exatamente assim é amável e desconfortável na mesma medida. minhas ferramentas ainda são as infantis? o que eu deveria já ter aprendido que ainda não aprendi? 

a infância é o período da solidão total: dentro dela, não podemos nos comunicar; os adultos não compreendem. fora dela, somos adultos e modalizamos a infância a partir da nossa recente incompreensão. eu gosto de você, repito, dessa vez para mim mesma. quando criança, parava diante do espelho com a boca aberta, os olhos abertos, as mãos abertas, tentando entender como era que aquilo que eu via não era algo solto no mundo, aquilo era o que eu era. criança, as barreiras ainda não existem, são construídas ou forçadas pelo tempo. eu gosto de você e parece que dá para cair e se machucar do jeito que só é possível de se machucar quando se é criança. 

na saída de uma aula, dentro da sala, roubo o beijo de um pobre coitado e saio correndo. repetindo e repetindo e repetindo os acontecimentos. as coisas costumeiramente não dão certo. refaço essa rota: as coisas dão certo do jeito que elas têm que dar, inclusive do jeito errado. o que é possível se querer de outra pessoa? eu penso em você. não importa se você pensa em mim. deito sozinha, entre a memória e a loucura, fechando os olhos no escuro e alucinando o seu peso sobre mim. se você não pensa agora, pensou depois do beijo roubado na sala de aula. se você não pensa agora, pensou enquanto sua boca tornava meu corpo alimento. o que se pode querer mais? o que se pode querer, claro. sempre mais. 

com muita seriedade, digo para amigos: as pessoas usam os verbos dar e comer de forma muito determinada e errada. como dois polos de uma ação conjunta. não, é tudo igual. dar é comer. eu dou a você meu corpo, você me consome; eu também consumo o corpo que você me oferta. corrompendo weil, que diz que o estado de santificação ocorre quando comer é olhar. não, não. você precisa entender o êxtase. comer é dar. diante do seu desejo, eu existo, você existe diante do meu desejo. coloco as mãos no seu rosto e é sólido e real, ainda que feito de brisa. com a boca cheia de você, penso: isso vai acabar comigo. isso vai acabar logo. olho para você, entre a memória e loucura, diante da alucinação, diante do nada, o que mais eu posso querer? o que mais eu devo querer?, isso só vai acabar aqui. no mundo de cá, esse mundo de fantasia, cheio de dentes e de doçura, a lição já foi dada e selada: o que é bonito há de ser para sempre uma alegria. 

assistir sex & the city está mexendo comigo

meu amigo pedro me enviou um poema do frank o'hara como consolo por eu falar tanto das mesmas coisas o tempo todo. eu posso ser perdoada por isso? fico pensando que devo soar, ou pior: ser, egocêntrica que nem a carrie, escrevendo sua coluna a partir de sua experiência e da experiência de suas amigas. eu devo ter feito umas cinco vezes um tweet dizendo que queria ser a annie ernaux cearense. eu sou viciada em mim mesma? na minha própria experiência? nos meus acontecimentos? em pensar e pensar e pensar sobre essas coisas; as coisas que estão ocorrendo comigo. eu sinto tanta falta da pura ficção. de ser adolescente e me entregar à escrita de fanfics, exercício de imaginação, brincar de casinha de bonecas com as bonecas que outras pessoas tinham confeccionado. sinto saudade da ficção. mas ao mesmo tempo, eu gosto, gosto mesmo, de falar assim. num espaço entre. limiares. isso aqui não é ficção, eu estou escrevendo no meu blog, mas existe algo de imaginativo, não sei dizer o que. essa voz, esse jeito. sou eu, mas num recorte tão específico. ou sou simplesmente eu.

hoje é dia primeiro de janeiro de dois mil e vinte e cinco. isso deve ser algo a se notar. no dia trinta de novembro de dois mil e vinte e quatro, minha cãzinha morreu. é estranho o longo lamento sobre isso? ela ia fazer quinze anos no dia dezesseis de dezembro. o que eu estava esperando mais? que um animal que vive em média esse tempo mesmo me acompanhasse por mais quinze anos? eu não estava esperando que ela morresse. eu não estava esperando que ela morresse assim: depois de uma rápida sedação para tirar os pontos de uma cirurgia muito mais complexa que havia sido um sucesso um mês antes. assim: na clínica veterinária, às três e meia da manhã, longe de casa. um dia, dentro de casa, eu iria acordar e ela teria morrido. ou ela estaria caminhando para fazer xixi, ou ir comer, ou só andando pelos corredores, teria um súbito mal, despencaria. ou então iria tomar um banho de sol e ficar lá, serenamente, até nos darmos conta que o único calor vinha da luz no seu pelo. ela morreu sozinha lá, ao lado de gente estranha, com um ar-condicionado gelado, odiando cada segundo longe de casa. como eu sinto falta dela.

eu fiz trinta anos no dia doze de novembro de dois mil e vinte e quatro. fico pensando que terei de viver até, pelo menos, os quarenta e cinco para ter plena noção do que são viver quinze anos sem ela. é muito tempo. 

passei a virada de ano com amigos queridos daqui. acho que foi uma das mais divertidas que já tive em brasília. eu gosto tanto dos meus amigos. eu amo os meus amigos, claro, mas eu gosto imensamente deles. constantemente sou pega de surpresa pela minha própria sorte: é normal conhecer tanta gente boa assim no mundo? chega a ser engraçado, falo de amigos para outros amigos e eles exclamam: meu deus, você tem amigos demais. é engraçado porque é absurdo, porque eu passei a infância solitariamente alugando todos os livros da biblioteca da escola porque não tinha com quem conversar; porque assim que eu mudei para brasília foram anos e anos para que eu conseguisse fazer uma amizade aqui e daqui que parecesse fazer total sentido comigo. 

desde muito pequena eu soube que gostaria de escrever. tudo começou com a fatídica redação escrita aos seis anos de idade que minha professora quis enviar para tentar publicá-la no diário do nordeste. essa alegria se espalhou pelo tempo, pelo resto da vida inteira, como uma coisa, a coisa, o que eu queria fazer. eu tinha diários, e eu mentia nos diários, porque queria que os acontecimentos fossem mais parecidos com os dos livros que eu lia, livros cheios de paqueras e gatinhos e "fala sério". quando eu cresci (ou seja, quando fui dos dez para os dezesseis anos), não interessava mais mentir em diários, mas interessava escrevê-los como coisas interessantes, como algo que outra pessoa pudesse se divertir lendo. vou culpar a professora por ter me colocado para escrever com a ideia de que haveria alguém lendo. mesmo as coisas que só me interessam. que são as minhas coisas. que não tem nem o poder encantatório da ficção. 

bom. a redação era um exercício de ficção. então talvez a culpa tenha sido minha, eu mesma me desvirtuei. 

escrever em blogs desde os catorze anos também foi algo. nos blogs, eu podia escrever de mim. nas fanfics, eu podia escrever das outras coisas. eu devia voltar para as fanfics, que começaram aos onze anos. ou deveria voltar às outras coisas. enquanto não volto a elas, fico com o blog, e falar de mim. um exercício de estudo do que me cerca, do que acontece. um exercício de estudo de mim mesma. que objeto mais trágico e traiçoeiro. e, pior, bobo. 

sinto que na adolescência fui tão violenta. as brigas com os amigos. discussões enormes. ficava chateada com as coisas, chorava e arranhava meus braços. tinha impulsos de violência física: eu e meu querido amigo átila brigando na escola, lembro de bater nele, não lembro o motivo, e eu o amava tanto. olho para isso e penso: como? mas o desejo de violência existe, eu acho que quase como uma saudade. há um tempinho, escrevi aqui sobre o desejo de ser monstruosa, de poder me tornar um monstro. deve ser a falta da crueldade que eu me permitia ali, na adolescência. a crueldade comigo mesma, a crueldade com os outros. e ainda assim, leio o que eu escrevia na época, lembro de acontecimentos e penso: eu era tão doce. todas essas coisas conviviam. 

a crueldade só dorme? por vezes, sinto o desejo de ser cruel, mas não sei como, ou talvez saiba sim, saiba muito bem como e não consiga. meu amigo bernardo dizendo que eu podia apertar o pescoço dele, e eu sem conseguir. uma trava de segurança. quero ser violenta, tenho medo de ser violenta e não parar. eu acho que as coisas funcionam em todas as direções. eu já disse isso? devo ter dito, é sempre uma repetição: então se eu tenho muita força para ser amável e gentil, eu devo ter a força no outro sentido também. muita, muita força para ser cruel, e um medo absurdo de sê-lo.

eu sinto muito amor. fico pensando, querendo justificar, que tudo isso começou em novembro de 2020, quando vi um alma-de-gato pela primeira vez, quando pensei nos pássaros pela primeira vez com atenção. antes disso, vivia dizendo na internet que queria ser uma árvore. porque elas são bonitas, porque elas são interessantes, porque elas são vivas de um jeito absolutamente diferente. mas ver aquele pássaro me fez ver os pássaros, e ver os pássaros me fez ver os calangos, e ver os calangos me fez ver as pedras, e ver as pedras me fez ver a terra, e o solo, e os fungos, e de novo: as árvores. os pássaros. mas isso já não estava cifrado em mim? quando criança, amava assistir documentários do reino animal, o meu sonho de trabalho era esse: ser documentarista do reino animal. eu descia do meu prédio carregando uma prancheta e anotando as coisas que via. meu amigo gabriel citou bento santiago em uma de nossas conversas, me disse que estava atando as duas pontas da vida. o bentinho não consegue restaurar na velhice a adolescência. eu estou restaurando a infância? aprendendo de novo aquilo que eu já sabia, e já sabia que era bom, e tinha esquecido. e agora eu lembrei. é bom. é bom.

às vezes, penso: tanta ternura vai me matar. claro, não vai. mas é quase isso. dá uma sensação parecida. o último homem que beijei estava muito triste, justificadamente, com questões da vida dele. lindos olhos, e embaçados de tristeza. senti tudo muito sério, os beijos, as mãos, tão quieto, tão sério, não queria nem respirar alto. só conseguia pensar: queria gravar isso, esse olhar de tristeza tão pura e tão digna, tão longe de qualquer coitadismo, apenas lá, como um fato real, puro. tristeza, nem feia nem bonita, apenas ela, e ainda assim, ele era tão doce e tão gentil. talvez por isso tenha me enternecido tanto, a tristeza no olhar convivendo com a delicadeza dos gestos. a simone weil escreveu que as pessoas tentam transmitir aquilo que sentem, alguém muito magoado machuca um animal ou uma criança porque são indefesos. a violência da adolescência não era isso? e me deparar com a dor que não quer ser transmitida, não assim, não como dor, e que é passada adiante como um beijo no joelho. 

acontece de quando estou triste, minha amiga rafaela olha para mim e diz: você está tão tristinha!, e indica os meus olhos, ainda que eu esteja sorrindo e fazendo graça. sempre que ela diz isso, sinto imenso carinho por ela. pelo olhar atento dela. penso que é isso que eu quero, que é o que eu mais quero, que é o que importa: olhar para as coisas atentamente. acho que me comove que meus amigos sejam assim. pessoas que olham para as coisas. cada um do seu jeito, e cada um fará uma coisa distinta com a mesma informação. mas todos prestam atenção. escrevi isso e soltei um suspiro alto, e comecei a rir da minha cara molhada de lágrimas. eu gosto tanto dessas pessoas. sentada ao lado da minha amiga marina, dez anos de estrada brasiliense juntas, ela vai se mudar para o exterior esse ano, olhando-a fumar e pensando: caramba, como já foram dez anos? como é que essa companhia eterna, de horas sentadas em cafés, vai para o outro lado desse continente? e ainda assim, tão feliz porque isso fará bem para ela. amar as pessoas, e amá-las perto e longe. amar até a despedida delas.

agora que eu tenho trinta anos, penso: quando eu tinha vinte anos, escrevi que meu coração era um museu. sempre voltado para trás. uma nostalgia que nunca fez sentido. me sinto longe da nostalgia. ou vivo a nostalgia do agora. parece que descobri, nos últimos anos, que tem tanta coisa bonita pra acontecer ainda. tanta coisa bonita que aconteceu. há muito tempo atrás, em dezembro de dois mil e onze, eu estava sentada na praia de noite com minha amiga mercúrio. ela era da internet e tinha ido me visitar em fortaleza. hoje eu nem a chamo de amiga da internet: ela está junto com os meus amigos de adolescência, infância tardia. tantos passinhos dado juntas e de longe. tanta coisa bonita que aconteceu. e tanta coisa triste também. e vai ser assim, sempre, essas ondas da vida: o ruim e o bom, misturado, junto, a angústia do riobaldo que esse mundo seja tão misturado, que não dê para colocar o bem e o mal de lados opostos. você está vivendo, e é bonito, e dói. abrir o coração e mirar e ver. 

enquanto tudo passa rápido na estrada

parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudess...