ternura, parte dois

durante três dias, estive apaixonada por um homem que iria embora. 

ir embora, talvez, seja o de menos. ladainha: de uma forma ou de outra, todos vamos embora. a aposta do amor é uma brincadeira com a morte – a morte do próprio amor, a morte do amante. durante três dias, estive apaixonada por um homem que iria embora. durante três dias, venci a aposta. durante três dias, envolto pelo meu amor, esse homem jamais poderia partir. 

do outro lado da mesa de um café, o homem que amei por três dias me olhava com seus olhos nublados. nos conhecíamos há dez anos e estávamos nos conhecendo naquele exato momento. minha palavras eram derramadas entre nós com algum nervosismo, nervosismo atípico: não éramos novidade um para o outro, e éramos, e tudo era novo e só agora eu entendia a força daqueles imensos olhos cheios de tristeza. o homem que amei por três dias me sorriu e afagou-me o braço, entrelaçando suas palavras às minhas. senti que amaria o homem que iria embora: três dias, três vezes para sempre. 

o homem, com seus três dias marcados a ferro no semblante, me deitou em sua cama e me despiu com gentileza impossível. em silêncio diante de sua calma, transformei-me em outra: quieta e suave. recebi seus presentes com gravidade atípica: beijou-me os cabelos e as têmporas, um sussurro, um farfalhar. beijou-me os olhos e as bochechas. a boca sobre a minha era o murmúrio dos pássaros pulando entre as folhas das árvores. era preciso memorizar sua mão, a textura de sua pele, o formato de seus dentes, a maciez dos seus lábios. era preciso guardar bem guardada a imagem de seu rosto acima do meu, olhos cerrados, uma expressão séria, séria. colei minha boca ao seu ombro, era preciso saber seu suor. o homem por quem estive apaixonada deixou uma série de palavras largadas no escuro, elas rolaram de sua língua e descansaram no leito do meu corpo. o homem por quem estive apaixonada beijou-me o colo e as axilas, os braços e os peitos, as palmas das mãos e o interior das coxas. seus dedos afagavam tornozelos e pulsos, afundavam na cintura e no quadril. dentro de mim, eu também estava dentro dele. sua delicadeza e sua doçura dançavam com sua tristeza. e comigo. 

com o homem que iria embora, o mundo se desfazia na falta de promessas. eu ansiava por uma mentira, uma mancha, um pouco menos de clareza. a opacidade ofereceria um conforto que depois, só depois, poderia me arrebentar. não: estar com ele era estar com o relógio. pus as mãos sobre seus olhos e desejei um milagre mesquinho – quando as retirasse, minha imagem iluminaria suas retinas da mesma forma que sua partida iluminava nossos passos, e ele decidiria ficar. o homem por quem estive apaixonada aguardou com paciência enquanto eu negociava com deus sua permanência. imóvel, parecia prestes a sorrir. quando o libertei outra vez, nada. epifania alguma. talvez a lama fosse parte crucial para o milagre da visão e me faltaria sempre a disposição de sujá-lo. 

o homem por quem estive apaixonada. o homem por quem me apaixonei. o homem que amei. o homem dos três dias. o homem que iria embora. o homem e sua mão na minha panturrilha. o homem e sua risada embriagada. o homem e seu silêncio. o homem e meu silêncio. coloquei-me diante dele com o coração em chamas. queria oferecer não o incêndio, mas o fogo de héstia. eu quero, eu quis. durante três dias, estive apaixonada por um homem irredutível em seu intento de partir. durante três dias. durante três dias. retirei um livro de minha prateleira, coloquei-o em suas mãos. uma lembrança de que eu havia existido, poemas marcados pela ponta do meu lápis, leve com você isso que não sou eu, mas que carrega um pouco do que eu sou. um mimo pelo avesso – é impossível tornar-se presente para quem irá embora. aceitando-o, era eu a presenteada: um suspiro aliviado de que haveria com ele algo que outrora fora meu.

após três dias, o homem por quem estive apaixonada foi embora. na minha casa, tremi e suei trinta e nove graus de febre madrugada adentro. não nos falamos mais. 

(para a parte um, aqui)

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