o reino dos sonhos

gosto muito que exista a expressão reino dos sonhos. que seja uma expressão consolidada. o reino. esse local que quem manda não é mais a realidade. isso é tudo muito bonito. vamos aos sonhos. 

um sonho de outra pessoa: minha amiga chora a perda de um grande amor, do seu grande amor, enquanto limpa o pus da boca de outra menina. imagine o pus, as lágrimas, o duplo choro: o da ferida na alma, o da ferida no corpo. essa outra menina é um desconhecida, ou conhecidos de sonhos, que são outro gênero de colegas que fazemos ao longo da vida. o amor é o amor do real, que escapa para o onírico; lembro que quando eu namorava, vivia sonhando com meu namorado, dormíamos lado a lado e eu ainda o encontrava nos sonhos. um sonho é uma porta, um reino, a boca inflamada de alguém que você não conhece, mas que você vai limpar mesmo assim, porque é o que é preciso e o que faz sentido. 

um sonho erótico: estou boiando em um lago. gosto muito de corpos de água, grandes corpos de água. rios, lagos, mares, açudes. meus sonhos têm muita água. estou boiando em um lago, tem sol, mas não muito, uma agitação e vem um crocodilo até mim, abocanha meu pulso, quase com ternura. acordo com a sensação. penso: foi um sonho erótico. sinto dificuldade de explicar para as pessoas, e não quero transformar isso em uma piada sobre scalies. não é pelo crocodilo em si, que não é humanizado. é a mordida do perigo tão singelamente dada em um momento de distração. repito: estou na água, tranquila. um crocodilo, tranquilo. meu pulso disposto para se tornar alimento. sou mordida, e não dói. 

um sonho cômico: carregando um filhote de bem-te-vi nas minhas mãos, desço dezenas de lances de escada, apavorada, não posso machucar o filhote e existem dois linces que me seguem nos degraus. eu só um pouco adiantada. isso tudo é treinamento dos correios. outro: sonho que estou numa consulta online com um psiquiatra que não abre sua câmera, insisto para que ele abra a câmera; quando ele enfim cede e se revela para mim, ele é um hamster.

gosto da lógica dos sonhos. as coisas são. ninguém precisa me dizer que o que eu estou fazendo faz parte do treinamento dos correios, eu apenas sei que é isso. eu apenas sei, em um sonho, quando estou com um amigo, quando estou com um amante, quando estou em perigo. as sensações todas redondinhas no peito. os ambientes mudam e tudo faz sentido. um sonho é feito de cortes. eu estou na minha casa, que não é a minha casa, e a minha casa é simultaneamente a escola, e tudo isso faz perfeito sentido. narrar um sonho é fazer uma porção de escolhas, canalizar a atenção. o mesmo que narrar um acontecimento do dia acordado. é possível dar conta de tudo? não.

sonhos com animais: estou sentada na areia, olhando o mar bravo, ao meu redor, centenas de leões estão adormecidos. estou sentada na areia, olhando o mar tranquilo, e de suas ondas saem muitos e enormes lagartos furta-cor, um deles se deita no meu colo enquanto eu tento ler o elegia 1938. estou dirigindo meu carro e no banco do passageiro, bêbado, está o hozier, com um cisne no colo. estou em uma casa tomada pela vegetação e por lobos, e os lobos me conhecem e estão preocupados comigo. estou olhando uma coruja através de grades, ela arranca as grades e me dá um recado, que eu esqueci. estou andando pela w3, descalça e de camisola, cheia de terra vermelha nos pés, e um passarinho se prende em meu cabelo. estou em uma brasília inundada, com água até a cintura, vejo uma cobra dar o bote em uma paca, surge uma onça e come a cobra, um urubu me dá um rasante, e chove, chove, chove. 

eu sempre sonhei demais. nunca achei que era demais, na realidade. todos os dias na escola chegava com sonhos novos para os meus amigos. todos os dias acordo com sonhos novos se dissipando por trás dos meus olhos. alguns valem algumas palavras, outros, não. sonho com beijar a boca de gente que nunca pensei em beijar a boca, e agora quero beijá-las. sonho com beijar a  boca de gente que desejo beijar a boca, e desejo ainda mais. sonho com estar perto de gente estranha que não é estranha, são meus amigos. sonho com meus amigos. sonho com a minha cã. depois de morta, ela ainda é minha? sonho com a cã e acordo com a agudeza da saudade. sonho com músicas. sonho com uma mesa de pessoas cantando clube da esquina. sonho com o paul em um bar, querendo puxar um coro de hey jude. sonho com sons de carrilhões. sonho com uma música que nunca ouvi.

sonho com fumar maconha (eu não fumo maconha!) e conversar com uma onça. sonho que estou tentando paquerar um rapaz que só quer dar um trago na sua maconha. quando li grande sertão, sonhei com o diabo na rua, no meio de um redemoinho. sonhei que estava lendo os miseráveis muitos meses depois de terminar a leitura. sonhei que estava lendo detetives selvagens no dia em que comecei a lê-lo e decidi que não iria continuar a leitura, porque ia me obcecar. sonhei que lia um conto inédito do machado. sonhei que lia um romance perdido do drummond. sonhei com uma edição de moby dick com as páginas pintadas de forma a simular o movimento do mar. sonhei que estava numa festa com o antonio candido, e ele cantava um funk. sonhei com o peter capaldi jovem, ele era meu namorado e morávamos em sobral. sonho, sonhei.

não existe final para esse texto. ele acaba abruptamente, como acordar. 

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