uma texto de ficção ou paixão simples, parte dois

 "queria a todo custo me lembrar do corpo dele, dos fios de cabelo aos dedos dos pés. conseguia ver, com precisão, os olhos verdes, a mecha balançando sobre a testa, a curva dos ombros. sentia os dentes, a parte interna de sua boca, a forma de suas coxas, a textura da pele. pensava que era muito estreito o limiar entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória e a loucura."

entre a memória e a loucura. queimo a sola dos sapatos evitando voltar para casa, na rua por dezoito horas, o tempo inteiro sua imagem na janela. ou: estou preso há anos na mesma praia, olhando para o mar, chorando todas as tardes desejando um retorno impossível. ou: a memória dos seus olhos se erguendo do livro que lemos juntos, sua boca cansada de hesitar sobre a minha e agora aqui, atada para sempre a você no redemoinho da nossa luxúria. beijar a boca de tão perfeito amante. respira perto de mim um pouquinho, quero lembrar do que pode ser muito bonito. você me dá adeus e eu sorrio e suspiro para o céu: por favor, deixa eu ficar com esse. 

sentir tanto assim é uma dádiva, ela me diz. ela também me diz como é bonito ver meu rosto aceso em olhos brilhantes e um sorriso cheio de dentes. sorrindo com todos os dentes, aperto-os, tentando manter algo dentro da boca: mais do que a língua que deseja falar e lamber, mais do que o coração que deseja viajar, é uma coisa, uma outra coisa. memória ou loucura? lembro e travo os dentes, tensamente feliz. imagino, alucino, preciso conter algo que aponto como um monstrinho, criaturinha cheia de espinhos e ainda assim tão amável que você só pensa em apertá-la. que importa uma ferida ou duas, quatro cinco ou cem cortes diante desse abraço impossível de descrever? como vou contar e você sentir em meu estado? mas você vai sentir, você já sabe, ou pode imaginar saber.

aos treze anos de idade, rabiscando uma carta para ser entregue, sob um falso véu de anonimato, para um rapaz de outra sala. derramando os sentimentos. ela me diz: a gente gosta de romance, a gente gosta de coisas bonitas acontecendo, a gente gosta de histórias mirabolantes. uma história mirabolante em cima da outra. ela sai andando por salvador, doida e desembestada, com o celular na mão procurando aquela com quem viria a se casar, mas com quem não tinha ainda trocado nenhuma palavra. algumas vezes, a loucura não só será perdoada: toda loucura será compensada. faça alguma coisa, faça qualquer coisa. o que é de chorar às vezes também é de sorrir. 

eu gosto de você..., sussurro? digo? sorrio, envergonhada, a mão no seu cabelo. sinto vontade de repetir: eu gosto de você. até mesmo: eu gosto de você!, ou então: eu gosto de você? com uma interrogação que não é realmente dúvida, é mais surpresa diante da constatação. posso gostar? não, claro que não, o tempo é curto e é errado; e ainda assim, gosto, um sorriso cheio de dentes, gosto de você e gosto do quanto poderia gostar de você. gosto do que é, gosto do potencial e até mesmo gosto do nada que resta, um nada colorido e cheio de vultos. quero gastar o meu gosto, amolar essa faca até que de tão certeira baste a ideia para executar o corte. o utinam a nostro secedere corpore possem. deixa eu olhar para o seu rosto só uma vez mais. que olhinhos mais bonitos que você tem. 

entre a memória e loucura. durante meses estive acompanhada por uma assombração. o cheiro estava em tudo o que eu tocava, e ela morava no canto do meu olho, inescapavelmente. as assombrações vão passar? a constatação é a de sempre, e é terrível: o fantasma sou eu. a terrível ferida não tarda a cicatrizar. é mentira, claro. a ferida está aí, aberta, orgulhosamente levada no peito. paro para respirar. meus olhos ardem, quentes, e o corpo todo quente junto, coloco as mãos docemente atrás dos meus joelhos e sinto quentes, quentes, quentes. estou com febre e começo a rir, tudo pode sempre ser tão divertido entre a memória e a loucura. a pele arde como o coração que está incendiado e eu constato que meu problema no mundo não é ser exatamente assim, é que ser exatamente assim é amável e desconfortável na mesma medida. minhas ferramentas ainda são as infantis? o que eu deveria já ter aprendido que ainda não aprendi? 

a infância é o período da solidão total: dentro dela, não podemos nos comunicar; os adultos não compreendem. fora dela, somos adultos e modalizamos a infância a partir da nossa recente incompreensão. eu gosto de você, repito, dessa vez para mim mesma. quando criança, parava diante do espelho com a boca aberta, os olhos abertos, as mãos abertas, tentando entender como era que aquilo que eu via não era algo solto no mundo, aquilo era o que eu era. criança, as barreiras ainda não existem, são construídas ou forçadas pelo tempo. eu gosto de você e parece que dá para cair e se machucar do jeito que só é possível de se machucar quando se é criança. 

na saída de uma aula, dentro da sala, roubo o beijo de um pobre coitado e saio correndo. repetindo e repetindo e repetindo os acontecimentos. as coisas costumeiramente não dão certo. refaço essa rota: as coisas dão certo do jeito que elas têm que dar, inclusive do jeito errado. o que é possível se querer de outra pessoa? eu penso em você. não importa se você pensa em mim. deito sozinha, entre a memória e a loucura, fechando os olhos no escuro e alucinando o seu peso sobre mim. se você não pensa agora, pensou depois do beijo roubado na sala de aula. se você não pensa agora, pensou enquanto sua boca tornava meu corpo alimento. o que se pode querer mais? o que se pode querer, claro. sempre mais. 

com muita seriedade, digo para amigos: as pessoas usam os verbos dar e comer de forma muito determinada e errada. como dois polos de uma ação conjunta. não, é tudo igual. dar é comer. eu dou a você meu corpo, você me consome; eu também consumo o corpo que você me oferta. corrompendo weil, que diz que o estado de santificação ocorre quando comer é olhar. não, não. você precisa entender o êxtase. comer é dar. diante do seu desejo, eu existo, você existe diante do meu desejo. coloco as mãos no seu rosto e é sólido e real, ainda que feito de brisa. com a boca cheia de você, penso: isso vai acabar comigo. isso vai acabar logo. olho para você, entre a memória e loucura, diante da alucinação, diante do nada, o que mais eu posso querer? o que mais eu devo querer?, isso só vai acabar aqui. no mundo de cá, esse mundo de fantasia, cheio de dentes e de doçura, a lição já foi dada e selada: o que é bonito há de ser para sempre uma alegria. 

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