um beijo nos joelhos, ou:

onde eu coloco toda essa lamúria?

estou obcecada com minha nova profissão e faço disso um assunto com todas as pessoas. faço de tudo um assunto com todas as pessoas. anne carson escreveu: o que eu faço com os meus olhos? e eu repito: o que eu faço com os meus olhos? olho para as crianças, que são adolescentes, algumas das crianças têm até mesmo dezoito anos, imagine só, e penso nelas com todo o carinho do mundo. sou professora há tão pouco tempo que não deu tempo ainda de ser derrotista, derrotada ou desinteressada. vivo com o eterno receio de que meu espírito não seja tão inquebrantável assim. os deuses vão me punir por acreditar que eu posso acreditar até o fim. um aluno está maravilhado com eu ter lido senhor dos anéis e saber o que é um rpg de mesa. eu estou maravilhada com o maravilhamento dele, e triste. meu deus, como pode ser assim tão solitária a infância? acabei me deparando com um vídeo meu adolescente. eu com dezesseis anos. eu com a idade dos meus alunos. não adianta: pensei tanto pensar sobre minha adolescência, estava enganada. ou melhor. eu tenho uma porção de registros da minha escrita adolescente. mas não era suficiente. mais uma vez, a vida, sempre, maior do que a literatura. olhei para a adolescente que fui e fiquei sem reação. as palavras, o jeito. sou eu, claro, evidentemente, sou eu, eu sou essa pessoa, e ao mesmo tempo é estranho que eu tenha sido já assim.

fico tentando escrever como forma de tirar algo de dentro de mim. a lamúria, as lamúrias. 

ela me perguntou como aconteciam comigo tantas coisas dignas de nota. com todo mundo, não acontecem coisas dignas de nota? ou tudo é digno de nota? eu sou aquela imagem de uma página inteira grifada a marca-texto: tudo é importante. o que eu faço com esses olhos? olho para você pela última vez tão de perto e penso que queria muito adiar o fim, o fim, sempre o fim, inevitável fim. falo em voz alta, nervosa: o que é gostar de alguém, se não adiar o inevitável? fico serenamente triste, tristemente serena. posso uma vez mais que seja pressionar meu rosto contra o seu? não. lembro de olhos fechados, meus olhos fechados, o desejo nunca realizado de poder ficar mais um pouco, não ir embora, conseguir voltar a trás, desfazer, refazer. posso sentir sua respiração, seu coração, sua pele, seu cheiro, sua voz, suas mãos, seus dentes? não, não, não, não, não, não, não. tudo impossível, três-tantos-impossível. queria morder a língua e calar a boca, mas não queria, não. o que eu faço com essa voz? aprendi a ser solene e séria por essa via, escrevendo na lousa: o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. o narrador também não. converso com um senhor na rua carregando caixas de seriguelas, eu gosto muito de seriguelas, são a cara da casa dos meus avós em sobral, a casa que não existe mais. esse senhor olha para mim com algo que beira a timidez e diz: você é uma moça muito bonita. com vergonha e sem desejo. olho para ele surpresa e espantada, abro a boca e gaguejo um obrigada, começo a rir e e ele também, nos despedimos. você me diz que eu sou bonita e eu balanço a cabeça, negando, não posso ser. você segura meu rosto, firme, olhos firmes diante dos meus temerosos, voz firme repetindo: é, sim. é, sim. 

eu não tenho nenhuma criatividade, mas acho que sei olhar e contar. meu amigo caique me disse que isso bastava, já tem ideia demais no mundo.

o meu pai, um homem triste, tão triste. eu triste diante dele triste. ele olha para o passado e rememora, conta para mim coisas de outros tempos, conta para mim da vida anterior a mim. fui a contagem regressiva para o fim dos seus sonhos. eu olho tanto para trás, ele também. a eterna angústia de não conseguir fazer com que as coisas deixem de estar afiadas entre nós. engulo em seco a certeza de que poderíamos nos dar bem, nos dar tão bem. ele sempre chora no final de orgulho & preconceito, a cena do mr. bennet vendo a alegria da lizzie. o que deu errado? tento ter carinho, e tenho, abro a boca e saem escorpiões. a única pessoa no mundo com quem eu não consigo ser compreensiva na hora imediata, só antes ou depois. o que eu faço com os olhos? olho para os dele, pequenos como os meus. o que a gente fez de errado? poderia ser muito pior, poderia ser muito melhor. em algum lugar das ruínas, corto minhas mãos tentando mais uma vez descobrir o que há no fundo. em algum lugar das ruínas, ralo os joelhos pensando que posso colocar algo no canto certo. em algum lugar das ruínas, lembro que não existe canto certo, só o resto de tudo desfeito e o que faremos a partir daí. 

falo muito de mim mesma, tenho impulso de pedir desculpas, lembro que isso é apenas um blog, lembro que falar de mim mesma é tentar falar de alguma outra coisa também. o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. 

cansei desses olhos, posso trocá-los? agora é tarde, tarde demais. muito medo de mudar e dar muito errado, medo de não mudar e também dar tudo errado. lembro da menina adolescente que eu fui, vejo que não mudei nada e mudei tudo. o que faço com o olhar? olho para os alunos, penso que muitos deles são tão legais. pessoas legais. imagino-os no futuro, torço para que sejam felizes, que entrem na universidade, que se divirtam, que descubram que o mundo é grande. é possível sentir tanto carinho assim por essas pessoas tão terríveis e estressantes, irritantes e barulhentas? elas me cansam, no último horário eu não aguento mais falar, erguer a voz parece um crime contra o meu corpo. tenho que repetir de novo? ficou claro o que eu disse sobre o eu-lírico? vou dar um exemplo. alguns anos, vivi em itabira. silêncio, afirmações. quero sentar, estou cansada. quero ficar calada, cansei de falar. quero fechar um pouco os olhos e dizer: tudo bem, mexam nos seus celulares. uma menina bate na porta e me pede indicações de livros de romance. uma menina me chama e pergunta se eu acredito em deus. uma menina me chama e pergunta qual a minha sexualidade. um menino me chama e diz que eu sou uma das poucas professoras legais. morro de medo de ser uma professora legal: estou fazendo tudo errado, então? vocês não deviam me achar legal. eu queria ser menos sorridente e achar vocês menos engraçados. não, professora, por quê? porque rindo tanto de tudo, como vocês vão me levar a sério quando precisa? e aí vou explicar, anotar coisas no quadro, e silêncio. como pode todo dia, toda aula, todo minuto ser diferente? que profissão é essa? os alunos me perguntam se eu sou professora de português ou de história, e eu digo: uai. de literatura.

estar triste por esses dias me cansa muito. eu também estou feliz e animada. o que eu faço com essa lamúria? acho tudo muito engraçado, não sei qual a verdade. eu sou triste e solar. eu sou feliz e ensimesmada. alguém me disse há um tempo que tudo era verdade. outra vez, abro os braços diante da tal experiência humana. o bom, o ruim. dia desses, perguntei aos meus amigos: o que tem de errado comigo? e respondi aos meus amigos: eu sinto que nada, não parece ter nada de errado comigo. olho para a adolescente do vídeo, lembro que ela achava que tudo, absolutamente tudo estava errado com ela, nela. nos olhos dela. o que eu faço com esses olhos? olho ao meu redor e me sinto cansada, muito cansada, e continuo olhando. 

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