eu gosto de olhar as coisas.
com lágrimas nos olhos, olho três dos meus amigos quase cinco da manhã dançando ao som de don't stop me now numa pista muito esvaziada. assim que a música se inicia, um deles me sussurra: vamos embora, chega. um estranho intervém: não, não, você vai dançar. como dizer não? ele vai dançar. fico sentada, meus pés doem terrivelmente após tantas horas em pé. dançar é bom. olho para os três e eles cantam e pulam e rodam, eles se mexem e eu olho braços e pernas e expressões faciais, e meus olhos se enchem de lágrimas porque. por quê? sinto muito amor. estou tão cansada, e rouca, e suada. por um instante, me parece que eu deveria estar lá, rodopiando junto, mãos dadas. mas não. sou egocêntrica? a moça feia debruçada na janela. a banda não está tocando para mim, mas eu acho que está. eles estão dançando porque estão dançando, isso não tem nada a ver comigo, mas tem, eu olho para eles e sinto que estão todos tão vivos, tão vivos e comigo, eles estão comigo, somos nós, eles e eu, juntos. eles dançam, eu olho. eles existem, eu olho. eles se mexem, rindo, divertidos, e eu olho, extasiada, apaixonada, encantada. meu cérebro fica repetindo: eu amo vocês, eu amo vocês, eu amo vocês.
dentro de um carro, um casal de amigos me convida a ser a professora de direção. os dois têm carteira, é tudo recente, dirigir dá um medo danado. fico sentada no banco do passageiro, tranquila, verdadeiramente tranquila. não me assusta estar no carro com eles, embora ambos estejam tão nervosos. alguns errinhos são cometidos, mas a morrer um carro é bem mais tranquilo do que morrer: basta dar a partida outra vez. curvas meio rápidas demais, entradas meio devagar demais. digo: está tudo bem, é normal, você está começando. um monte de coisinhas prontas, mas as sinto de verdade. minha amiga vai para o volante, dizendo que só dirige em estacionamentos. tiro uma porção de fotos dela, ela está tão linda, usando oclinhos escuros, blusinha listrada. eles dirigem e eu coloco a mão do lado de fora da janela, sentindo a resistência do vento. é tão bom, o ar se torna um bloco, sólido, contra a velocidade, minha mão que cede aos seus movimentos. vamos para outro lugar, meu amigo diz: um pica-pau. desço do carro exasperada e lenta para fotografá-lo. pica-paus sempre parecem pássaros de brinquedo, de pelúcia. fico tirando fotos e os dois aguardam pacientemente dentro do carro. é tão bom poder se distrair em companhia, olhar as coisas em companhia. de volta ao carro, no caminho, esmiúço para os dois alguns dos meus sentimentos, e eles escutam e respondem sob a tensão do trânsito. me sinto muito amada. é possível isso? estou trapaceando em algo? eu os amo, eu sou amada.
no caminho de volta para casa, minha amiga me diz que não sabe o que ainda oferece para a nossa amizade, depois de tantos anos, com tanta gente nova tendo pipocado em minha vida. a frase me soa compreensível e absurda. ela é ela. penso em todas as tardes e noites passadas na companhia uma da outra. assistindo filmes juntas no sofá da casa que ela morava, mãos dadas nos momentos de tensão. piqueniques em parques. uma obsessão alimentar depois da outra. ela mexe as mãos de maneira tão bonita. seus dedos são finos, ossinhos de pássaro. constantemente sou lembrada de uma tarde em um parque, eu ensandecida segurando meu celular como se fosse uma arma, mostrando para ela algo que me parecia, que era, um crime. ela me vê com a faca na mão e apresenta uma solução que a um só tempo me vinga e me salva. posso soltar a arma, posso me acalmar de novo. o que é um amiga? alguém que você escuta. alguém que escuta você. os mesmos assuntos, e os novos, repetidos, reiterados, apresentados, por anos a fio. uma amiga, um museu da sua história, uma exposição de quadros novos. ela e seus ossos de passarinho, leves como o ar, pronta para partir mais uma vez. penso na saudade que vai ficar comigo e na saudade que ela vai levar com ela. um sentimento como um daqueles cordões que dividimos ao meio, cada uma com uma parte. o que ela oferece? empresto meu olhos, que pensam sempre que a beleza do mundo está aí disponível para eles: tudo.
olhar as coisas sempre foi um prazer. uma infância gasta de olhos na porosidade do asfalto, nas rachaduras dos troncos das árvores. adolescente, gastei os olhos nas bocas que jamais poderia beijar, nas mãos dos professores que um dia gostaria de imitar, nas lombadas dos livros nas livrarias de shopping. adulta, a visão ainda não cansou: olhe aqui, essa folha, esse pássaro, essa placa, essa pessoa. vivendo uma repetição de tudo, sempre. gostava de olhar, ainda gosto. tenho apreço pelos meus olhos: pequenos e feios e ainda assim é por eles que tanta beleza passa. quanta generosidade é preciso para que você dê o que te falta ao outro? meus queridos olhinhos: não importa como veem ou não veem vocês, importa o que vocês veem. o mundo não é feito para mim. tudo estava antes, tudo estará depois. mas enquanto eu estou aqui, distorço a verdade e torno tudo meu, tomo tudo: eu quero ver. quero ser boa de olhos. deixa eu olhar para eles, para essas pessoas que eu amo. deixa eu olhar para as coisas. quero me encantar diante de um pássaro, diante de um calango, diante de um folha que é tão enorme e tão verde.
um dia vejo pedra e é pedra mesmo, e basta que seja. pedra, água, sol, chuva. só o que as coisas são, sem metáforas nem alegorias, e já é tanto. pensar no detalhe de tudo, na loucura que é poder colocar as mãos: nos braços de quem eu amo, numa laranja para ser cortada. tudo existe muito.
diante da professora que eu amo, explico para ela uma situação e ela escuta, suas lindas mãozinhas pequenas sobre os lábios enquanto sussurra "gente...". ela é pequenininha, com mãos de dedinhos rechonchudos, curtinhos. outra vez, sentada no corredor do lado de fora de sua aula, vejo projetada na parede a sua sombra segurando um livro nas mãos. sorrio, tiro fotos da sombra. eu a amo de um jeito que até me assusta pelo tamanho e força, a vontade de estar perto, de saber como e o que ela pensa. uma admiração que ultrapassou os limites da primeira relação que estabelecemos, ainda que eu me sinta aluna de tudo, ela já me trata como outra professora. ela termina de me escutar, toma um gole de suco e fala: você tem o coração muito aberto. congelo meu sorriso. eu tenho? eu tenho. mas quem é que mede a abertura de um coração? como eu sei, como ela sabe que esse coração é aberto assim? ela prossegue: eu não sou assim, abro apenas frestinhas. rio e quero dizer que escancarei a porta, ou bati tanto com tanta força que ela teve que me aceitar na sua vida, mas não quero interrompê-la. ela diz: eu não daria conta de ser assim. eu dou conta? eu só sou assim. é mérito ou demérito ou nada, neutro, ser desse jeito? um coração tão aberto é problema e é solução na mesma medida. ela é minha professora, então só me resta dizer: me ensina a ser diferente. com um sorriso meio envergonhado, meio falseado. ela me olha e diz, categórica: Não.
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