rock de pai

eu sou um certo tipo de nepobaby que existe no brasil. isso é, não sou herdeira de uma família de negócios, não consigo traçar minha árvore genealógica até sei lá quantas gerações, nunca vou gravar um episódio de um certo podcast pedindo perdão pelos crimes dos meus avós ou coisa parecida. mas sou filha de servidores públicos que foram esquerdistas na sua vida universitária. não sou a primeira geração da minha família a ir para a universidade, mas sim, a segunda. 

muitos dos livros que eu mais tenho gostado dos últimos tempos tratam da primeira geração. a tetralogia, a ernaux, o sobre a terra somos belos por um instante, por aí vai. leio esses livros e penso nos meus pais. minha mãe é do interior do ceará: nasceu no cariré, o google me informa que em 2020 a população ia lá por seus dezoito mil e poucos habitantes. ainda criança, a família se mudou para sobral, para nós, cearenses, os estados unidos de sobral. não devia ser muito assim na época. aos dezoito anos, minha mãe saiu de sobral para se mudar para fortaleza, indo morar na casa de uma tia. ela então começou a fazer serviço social na uece. do lado de meu pai: meus avós paternos são de quixadá, mas se mudaram para fortaleza e os três filhos já nasceram na capital. meu pai fez duas graduações, embora tenha me escondido a primeira e eu só a tenha descoberto quando achei seu diploma na época de arrumar as coisas para se mudar pra brasília: biblioteconomia e direito, ambas na ufc. os dois se conheceram no sindicato. meu pai era vigilante noturno no ministério da agricultura, minha mãe trabalhava como assistente social num hospital especializado em hanseníase. 

eu apanhei duas vezes na vida: uma quando estava me alfabetizando, confundia o "b" e o "d" feitos de cartolina, a cada vez que errava, meu pai batia na minha mão com uma chinela. a outra foi quando fiz birra num restaurante porque não queria almoçar, queria picolé. minha mãe me deu o picolé e disse que em casa conversaríamos. a conversa foi o cinto batendo na palma da minha mão e uma vez em cada coxa. depois disso, subi em cima da minha cama e, quando meu pai foi me ver, perguntei: você veio me bater mais?; quando fui até a cozinha pegar água, encontrei os dois chorando. outro castigo veio de um dia em que queria muito comer o molho de cachorro quente da minha mãe (até hoje, uma delícia) e ela, irritada com minha insistência, fez uma panela de molho e disse que eu só sairia dali quando comesse tudo. ela mesma não aguentou o castigo, chorando quando comecei a chorar. 

pontuo essas três histórias porque são apenas elas três e porque meus pais cresceram apanhando terrivelmente. cintos, cipós, chinelas: meu pai disse que uma vez meu avô colocou um copo emborcado sobre a cabeça dele, batendo no fundo do copo, a pancada ressoando pelo crânio do menino que um dia iria me criar. minha mãe apanhava preventivamente: como meu avô batia muito na filha mais velha, nas palavras dele muito namoradeira, minha mãe, sem fazer nada, apanhava e ajoelhava em grãos de milho para não ser namoradeira. 

na estante da minha casa, os nomes que depois de muitos anos eu iria reconhecer: lukács, gramsci, freud, luxemburgo. uma edição caindo aos pedaços, já nos anos 2000, de os sertões. o primeiro volume das brumas de avalon, com uma dedicatória feita em doze de novembro de 1995, meu aniversário de um ano: minha mãe dizia que esperava que esse livro fizesse parte da minha biblioteca. ela se esqueceu disso e, quando eu tinha quinze anos, mexendo na estante, reencontrei o livro, perdido na camada mais ao fundo da prateleira mais alta. junto dele, estava também um livro sobre lilith. o mulheres que correm com os lobos. o livro vermelho. do mao, não do jung. eu não sou uma filha rebelde, alguém que teve que romper com o pensamento dos pais, ou alguém que teve que descobrir sozinha essas coisas. na casa da minha madrinha, num porta-retrato desde sempre, para mim, uma foto de quando ela e minha mãe viajaram em 1989 juntas para cuba. retrato do che na parede. desde criança, odiei a polícia e os militares, sob os ensinamentos dos meus pais. 

não foi assim para eles.

meu pai me conta de ser adolescente e usar qualquer dinheiro que minha avó dava a ele para comprar comida ou para passagem de ônibus como reserva para comprar discos. ele me conta que ficava com fome, só comia em casa, e andava muito, muito a pé. cada disco que conseguia comprar, um tesouro. ele gostava de rock. quando lennon morreu, meu pai tinha recém-feitos dezoito anos. ele comprou todas as revistas que podia sobre o assunto. um tempo depois, talvez um pouco mais velho, numa briga que nunca me foi explicada, mas que não precisa, meu avô, para puni-lo, jogou fora tudo, todo o pequeno império que meu pai tinha conseguido com tanto custo: discos, revistas sobre música e músicos, tudo para o lixo. quando eu era criança e estava na sala com ele, ouvindo um disco do the police, meu pai me parava, olhos no tempo, e dizia: numa briga, o pai jogou tudo meu fora. meu pai dizia: o pai não entendia.  

eu nunca fui punida dessa forma. desde cedo, como não?, gostei de ler. no natal dos anos 2000, ano em que terminei a alfabetização, meu padrinho me presenteou com o primeiro harry potter. nada de livros com figurinhas. agora você sabe ler e vai ler. meus pais me davam livros. nunca jogaram fora nenhum deles, nem mesmo quando minhas notas na escola ficaram horríveis na adolescência, até porque não era por conta dos livros e sim, das fanfics. não tem como jogar fanfic fora. 

engraçado escrever esse texto fazendo essa exposição de privilégio. penso num tweet que li, uma pessoa dizendo do choque ao chegar na universidade e descobrir que os pais de colegas ouviam música e liam livros. eu tinha quatro anos e minha mãe estava fazendo mestrado em saúde pública na ufc. enquanto isso, dois dos seus irmãos eram caminhoneiros, um era gari, a irmã mais velha dona de casa, um trabalhava na prensa do jornal. com cinquenta anos, minha tia fez pedagogia. a segunda das irmãs a ir para a universidade. 

leio as ficções, autoficções, relatos autobiográficos de autores que fizeram esse caminho. os que se aproximaram da academia, do mundo da palavra, da leitura. a bell hooks falando que a forma imposta de se lidar com isso é pela assimilação: abandonar esse passado, a origem, passar a se comportar como os que você conhece na academia. a bell hooks dizendo que essa não é a única alternativa. é possível também viver a contradição. trazer a origem para perto. mantê-la no horizonte. tento imaginar meus pais adentrando as salas de aula de suas respectivas universidades a primeira vez. o que eles pensavam, o que sentiam. a necessidade de alcançar o patamar imposto por alguém. a liberdade que vem de se descobrir num novo espaço. minha mãe passou a vida com a família pensando em si como feia. a irmã mais velha era a bonita. na universidade, descobriu que era bonita, que era inteligente, que era interessante. envolveu-se em todos os projetos possíveis. o medo de se descobrir num novo espaço. o medo de falhar e de ter que voltar a origem. o medo de não falhar e nunca voltar a origem. aprender a equilibrar tudo isso. o dinheiro enviado aos pais. a inversão pela qual ambos passaram: não somos mais nós quem dependemos de vocês, são vocês que dependem da gente. 

uma vez, no trabalho, recebemos uma autora de vinte anos. sua família estava aqui. pesquisando seu nome no google, encontrei um avô advogado, um tataravô barão. olhar para aquela menina de rosto redondo, tão gentil e tão educada, rica, realmente rica, e pensar que ela descende de um escravocrata numa linha tão contínua e direta. puta que pariu. 

o mundo do trabalho. o mundo da leitura. o mundo da leitura como trabalho. meu pai vendia banana quando era criança. eu nunca vendi nada quando era criança. se meus pais apanhavam tanto, quanto os pais deles apanharam também? meu pai, por volta dos quarenta anos, me dizendo que o pai dele não entendia. uma vez, quando eu tinha uns catorze, quinze, estava na casa da minha avó paterna, e estava ouvindo encerramentos de naruto. começou a tocar um e ela ficou parada, do meu lado, ouvindo aquela música em japonês que eu amava tanto. com lágrimas nos olhos, minha avó me disse: que música linda. quando minha avó materna era viva, assistindo novela de tarde e de noite, reclamando para a televisão que a narrativa não estava fazendo sentido. meu pai, na casa dos sessenta anos agora, me contando do seu pai, vendedor de bananas, depois taxista, alcoólatra, violento, mas que gostava de repente. gostava de improvisar, gostava de decorar bons repentes, repetia-os até a exaustão, improvisava. meu pai diz: eu achava que ele não entendia, eu que não entendi. 


esse texto não vai ser legal porque estou ruim com as palavras

hoje eu falei no twitter que algo que me incomoda quando eu estou num mau período de leitura é ouvir outras pessoas falarem de livros e desejar a sensação da leitura. um mau período de leitura é um período de desconcentração: nenhum livro é terminado, começo vários, pulando de primeiras em primeiras páginas, obras distintas, lendo capítulos aleatórios quando é possível, coletâneas de ensaio nunca terminadas. é um mau período de leitura, mas apenas porque me frustra – a realidade é que ler um parágrafo de algo já é ler alguma coisa, por pior que possa parecer, dá pra ter uma ideia com um parágrafo. 

mas pensar no desejo da leitura. eu sinto tanto prazer ouvindo pessoas fazerem boas elaborações sobre suas leituras. falarem dos seus interesses, da bibliografia e da biblioteca de cada um. quando escuto alguém falando coisas interessantes sobre algo que leu, ou quando escuto alguém falando de forma emocionada sobre algo que leu – essas coisas costumam se confundir, nos meus ouvidos –, eu sinto o desejo de ler para compartilhar isso. o desejo de sentir isso também, como eu coloquei na minha monografia. sentir isso também pode ser com o mesmo livro: não é essa uma das formas de se chegar nas nossas leituras? a trama de indicações dos amigos ou professores ou outras pessoas em quem confiamos. a trama da curiosidade. mas sentir isso também pode ser simplesmente sentir o prazer de pensar diante de um texto. 

o que eu vou dizer vai soar engraçado, mas eu gosto muito de pensar. eu gosto especialmente de pensar sobre leitura e literatura, de pensar sobre sala de aula e professores, mas no geral é isso, gosto de pensar. sinto que penso enquanto escrevo. comecei a escrever isso como faço quando falo em sala de aula: sem saber como vai terminar, se é que vai terminar, se é que eu não vou só abruptamente parar. eu vivo preocupada: será que eu sei pensar?, quando estou pensando, apenas. quando eu começo a escrever, eu consigo acompanha o fio da ideia. é engraçado. escrever, ordenar os pensamentos, ou ao menos elencá-los. e as coisas podem só parar abruptamente porque nada aqui é definitivo. eu estou só tentando pensar. 

eu tenho vontade de perguntar, e tenho perguntado, para as pessoas: o que é uma boa aula de literatura pra você? o que é um bom professor de literatura? quais são seus exemplos positivos de sala de aula? e os ruins? – fico curiosa com o parâmetro dos outros, quero entender o que acontece em aulas de literatura na universidade, o que faz com que alguns professores consigam uma turma atenta e participativa e que lê tudo, o que faz com que alguns professores não consigam algo disso ou nada disso. são os alunos? são os professores? as aulas boas são uma conjunção cósmica e rara? tem um pouco de sorte na jogada, como em tudo, e um pouco de prática, como em tudo? 

não sei! 

um dia, na unb, vi o paulo henriques britto falando de poesia. eu me dei conta ali que qualquer outra pessoa fazendo o que ele estava fazendo poderia ser detestável. ele estava decompondo o poema e nos apresentando o poema decomposto: no slide, cinco colunas categorizavam coisas que eu sequer lembro. as rimas internas, o padrão de rimas, e por aí além. a coisa é que ele estava deslumbrado com aquilo. dava pra ver a empolgação em esmiuçar um poema daquele jeito. eu estava deslumbrada com ele. eu nunca pensaria naquilo. eu nunca tentaria reproduzir isso – seria um porre. funcionou porque era ele. 

penso na professora que eu amo. queria entender esse amor. correndo o risco de soar absurda, li o capítulo chamado paulo freire do ensinando a transgredir e chorei um pouco. não pela bell hooks falando do paulo freire, não só isso, mas por... bem... ver na bell hooks o reflexo da admiração que tenho pela professora que eu amo. a forma como ela fala do paulo freire pareceu tão próxima de mim. algo que sei que amo na professora é que eu percebo que ela pensa. que, durante a aula, ela está considerando, cogitando, ouvindo, ficando em dúvida. ela é uma grande partidária da dúvida. uma professora universitária sem certezas. abandonou o hábito de ser categórica. acho que isso me encanta: ver o pensamento, ver a consideração, ver a dúvida, ver a possibilidade. saber que ainda podemos nos encher de reticências e pontos de interrogação. 

de volta à leitura. quando estava lendo detetives selvagens, ficava impressionada com o que estava acontecendo, queria me tornar meu próprio objeto de estudo (será que não estou sempre fazendo isso? sou egocêntrica. observo os fenômenos em mim mesma e penso sobre eles). como era possível que a leitura estivesse me fazendo sentir o deleite do apaixonamento? isso já tinha acontecido antes. fazia tempo que não acontecia. talvez nunca tivesse acontecido assim – toda vez que você se apaixona, é ligeiramente diferente porque a pessoa é diferente, ainda que você seja a mesma pessoa. a paixão se faz nessa interação. eu nunca tinha me apaixonado por detetives selvagens até me apaixonar por detetives selvagens. era paixão, como eu a conhecia, e também era algo inteiramente novo. eu parava com o livro sobre o peito como se acolhesse um amante. dormia sorrindo, pensando que na manhã seguinte estaria de novo com as páginas nas mãos. estava vidrada, fissurada, os pensamentos todos apenas ali. vivendo um romance com um romance. 

obviamente, ler não é sempre assim. às vezes, você quer apenas beijar na boca de uma pessoa e pronto, muitos livros são ótimos e breves, maravilhosos, interessantes, mas não uma obsessão, um desejo de mais daquilo. será que pega mal elaborar uma teoria da leitura que é também uma teoria do apaixonamento? ou apenas ler a leitura como lemos as paixões. eu consigo pensar em algo que não seja na forma do desejo? a ânsia de ler pela sensação do prazer da leitura. a eterna ânsia de beijar um pouco mais na boca. a ânsia de viver um romance, a ânsia de estar com as palavras de um romance flutuando por trás das suas pálpebras antes de dormir. 

não sei de nada, não. tenho vontade de compartilhar coisas e de ouvir coisas. será que já escrevi sobre tudo isso? esse mesmo texto? sinto que estou sempre repetindo as mesmas coisas, mas pelo menos tento trocar as palavras. a leitura é e não é uma atividade solitária. ler sozinha. ler procurando o outro nas palavras: quando recebemos a indicação de alguém que gostamos, quando lemos um livro por conta de outra pessoa, ler esse livro e buscar nele o que mobilizou o outro. eu acho que eu só gosto muito de interação. talvez tudo se resuma a isso. 

vontade de terminar isso aqui mandando um beijo pra quem estiver lendo.
um beijo! 

outros jeitos de usar a boca? não, obrigada

você tem doze anos e quer beijar o seu melhor amigo. você mentiu para o seu grupo que já tinha beijado de língua um rapaz que conheceu em sobral nas últimas férias. vicente, o nome dele. coitado. vicente era muito simpático e vocês tomaram banho de rio e ele deveria ter uns dezesseis, dezessete anos e durante um dia inteiro você se apaixonou profundamente por ele e adoraria que ao final do dia, sentados nos balanços, vicente fizesse que nem nos livros e nas fanfics que você lê e se inclinasse e segurasse seu queixo e explorasse sua boca com a língua ou outro jargão do tipo. não foi o que aconteceu. então de volta à escola e ao seu melhor amigo e ao fato de que você nunca beijou na boca, mas ou ninguém sabe ou todo mundo desconfia que você está mentido, e ele nunca beijou na boca e todo mundo sabe. vocês começam a dar selinhos muitas vezes. é uma época importante na escola, o festival de artes e criatividade. legal. você quer saber é de beijar na boca. esse período vai fazer com que uma chama eterna se acenda no seu cérebro: beijar na boca é muito legal. ainda que apenas selinhos. sempre bom ter um beijinho pra dar. um dia, o grupo de amigos, ou você e seu melhor amigo, ou todo mundo, define que é chegada a hora do temeroso beijo de língua. vocês vão para o quarto de um dos amigos. vocês se olham tensamente. vocês se beijam de língua na medida do possível. nessa época, você já tinha lido todos os livros d'os karas, do pedro bandeira, e lembra que no droga de americana o miguel descreve o coração dele batendo como um carneirinho. essas palavras surgem na sua mente porque é impossível não perceber, dada a proximidade, o quanto o coração de vocês pula. nervosismo puro. é tanto medo que mal dá para se derramar nas mecânicas do beijo na boca de língua direito. vocês se afastam e se abraçam com os corações de passarinho assustado piando um para o outro.

você tem treze anos e quer beijar sua melhor amiga. isso não te choca muito, não. você é muito fanfiqueira para qualquer tipo de julgamento moral sobre si mesma ou sobre os outros. calma, correção. claro que você tem julgamento moral sobre os outros: as patricinhas e os meninos chatos do futebol não merecem perdão algum no seu coração. você está sentada perto de uma fonte do shopping com ela e com algum receio informa que acha que quer beijar meninas. um receio que existe porque existe, mas que na sua cabeça já não faz nenhum sentido. vocês passam grande parte do dia pensando sobre homens beijando homens e mulheres beijando mulheres. todos aqueles ninjas adolescentes de konoha precisam extravasar suas tensões uns com os outros, afinal. e vocês adolescentes na escola também. um dia, ela vai dormir na sua casa e você pergunta (você pergunta! que divertido: as promessas de quem somos.): você quer saber se você gosta de beijar meninas também? a gente se beija e se você quiser parar. reticências no ar. muito mais nervosismo do que com o seu melhor amigo, mas também menos nervosismo porque você agora você sabe mais ou menos o que fazer com a língua na boca de outra pessoa. 

você tem treze, catorze anos e adora beijar seus amigos. seus amigos também adoram se beijar. essa aí é a verdadeira anarquia relacional, diria um namorado seu muitos anos depois. vocês eram melhores amigos. vocês escreviam fanfic. vocês ouviam música. vocês beijavam na boca. você também queria a experiência de beijar na boca de outras pessoas. que não te entendessem mal: beijar os amigos era uma maravilha. descoberta da sexualidade com segurança e confiança. mas onde estava o romance? todos aqueles livros e todas aquelas fanfics faziam você desejar constantemente pelo arrebatamento total da alma. aos catorze anos, você se apaixonou de verdade pelo álvares de azevedo. não como um poeta (embora no futuro você vá adorar, particularmente, comer poetas), mas como o rapazinho traduzido em rapaz emo no futuro, que ele deveria ser. era importantíssimo, fundamental se perguntar e perguntar aos seus amigos: vocês acham que o álvares de azevedo iria se apaixonar por mim de volta? seu melhor amigo, o do primeiro beijo, responde que sim, se ele conversasse com você, é claro que ele iria se apaixonar por você. mas muitas pessoas conversavam com você e elas não se apaixonavam por você. chocante. 

você tem catorze anos e elege um dos meninos nerds como potencial amoroso. bom, vamos lá: o que é ser nerd em 2008 não é a mesma coisa que ser nerd em 2024. naquela época, era que o menino gostava de matemática e física. existem múltiplos grupos de excluídos numa sala de aula, o que significa que ninguém é de fato excluído. você e seus amigos esquisitos são esquisitos de um jeito outro que ele e os amigos esquisitos deles. mas, de acordo com seu julgamento moral, qualquer esquisito é bem-vindo e melhor do que os adolescentes normais. você é muito melhor do que os adolescentes normais! porque você gosta de LER! e você também beija na boca! dos seus amigos. mas ainda assim. o melhor dos mundos. mas de volta ao rapaz. você começa a rondá-lo. coitado. um dia, na saída da sala, você comete um ato impensável. uma loucurinha. afinal, todo mundo da sala está lá, as pessoas podem ver, você é maluca? mais cedo naquela semana, você perguntou a ele se ele gostava de uma outra menina. uma menina nerd matemática. ela era uma querida, por onde anda? e alguns dias depois, naquele fatídico dia, ele responde sua inquietação: acho que eu gosto sim dela. final da aula. hora de ir embora. você vai até ele diz: é uma pena que você goste da menina. e taca um beijo na boca do rapaz. sem língua. sai correndo, vermelha, e derruba o volume oito de death note, o com o mello na capa, no caminho. é humilhante ter que parar para recuperá-lo. o dia seguinte é terrível. você escreve uma fanfic shino/ino sobre isso. tem algo muito engraçado em você usar logo a ino, a grande patricinha, como você na fanfic. 

existiu um longo e sombrio período sem beijos na boca na sua vida. tempos tenebrosos. beijar na boca é muito bom. sem beijos, mas com um constante desejo de beijos. você mudou de cidade. beijar parecia algo impossível e distante. não era. a lição mais importante que você irá aprender nos seus anos de cidade nova, referente ao tópico beijar na boca, é que gente feia também transa. uma lição libertadora. 

bem. você tem dezenove anos e quer beijar sua melhor amiga. vocês se conheceram pela internet. ela foi na sua cidade natal. agora você a visita na cidade natal dela. é noite e ela está te ensinando a fumar. ela acabou de fazer dezenove anos. ela é a pessoa mais bonita do mundo. no final do ano anterior, você beijou pessoas novas. uma garota um pouco mais velha. um garoto um pouco mais velho. você transou com eles (não ao mesmo tempo, embora, a certa altura, eles quisessem), mas essa era a época em você não se importava muito com sexo. você quer beijar a sua amiga. você quer pegar o cigarro das mãos dela e falar para ela te dar um beijo. ou perguntar se você pode dar um beijo nela. muitos anos atrás, ela quis te beijar. você vai descobrir que tem um problema de tempo: desejos desencontrados. é normal, não é? os desejos ficam desencontrados muitas vezes na vida de muitas pessoas. vocês não se beijam e você deseja imensamente uma realidade paralela em que você possa ser repleta dessa coragem tola e quente, que queima tudo pela frente. às vezes, não dá. você sente que o beijo que você daria nela está para sempre preso na sua boca, como um comichão eterno. 

você tem vinte anos e quer beijar uma menina que conhece escrevendo rpg de fórum. você tem vinte e um anos e quer beijar o seu melhor amigo da cidade. você tem vinte e dois anos e quer beijar um monte de gente desconhecida que encontra via aplicativos. você quer beijar, de novo, aos vinte e dois anos, o seu novo melhor amigo do curso de letras. você beija todas essas pessoas. será que uma hora você vai querer parar de beijar seus amigos? parece uma construção tão evidente: eu amo muito essa pessoa. ela me diverte incrivelmente. eu adoro falar com ela. logo, eu preciso dar um beijo na boca dela. apenas mais uma forma de carinho. você namora três pessoas na vida: a menina do fórum e vocês nunca falam de beijar outras pessoas, não precisa disso. uma pessoa do twitter, que tem uma relação não-monogâmica de anos, e está meio dado que vocês beijarão outras pessoas. um anônimo do curious cat, e para ele é um crime que você sequer pense em beijar pessoas, ainda que seus amigos, até que ele queira beijar outra pessoa. lições: beijar na boca é um gesto que preciso de um longo estudo sobre. e: alguma hora você vai parar de namorar gente da internet? 

você tem quase trinta anos (você tem dito já que tem quase trinta anos faz uns três anos, porque quase algo é assim mesmo. a distância é deliberada. mas agora é seríssimo: mais do que nunca, você tem quase trinta anos) e quer beijar um homem grisalho que vai na livraria. a garota por quem você era levemente apaixonada na época da escola, mas ela tem namorada. uma amiga sua que provavelmente você nunca vai beijar. um amigo seu que provavelmente você nunca vai beijar. dois dos seus melhores amigos de infância, mas aí você fica na dúvida se quer beijá-los ou vê-los se beijando, mas provavelmente é tudo ao mesmo tempo. você tem quase trinta anos e ri muito da própria cara pensando: meu deus, que horas esse afã adolescente vai passar? o tesão é eterno? graças a deus se for, claro, mas é todo mundo assim? você sabe que não: alguns dos seus amigos acham graça de você com você. de alguns, você não considera os gracejos: vocês namoram, você diz. quem pode beijar na boca ou ter a promessa do beijo não pode se divertir às suas custas (só um pouquinho). outros dos seus amigos dizem: ah, é legal, mas eu consigo ficar de boa. você queria ficar de boa, mas você também não fica de boa sobre nada, no geral, então é só mais um braço da sua personalidade. 

mesa de bar. você tem quase trinta anos e pensa: ah, eu poderia beijar meu melhor amigo..., e ri sozinha. laudo médico e espiritual: deus depositou milhares de beijos na sua boca. cabe a você distribui-los. 

sensível demais, eu sou um alguém que chora

 


quando eu era criança, não podia ouvir as músicas rosa de hiroshima e lamento sertanejo. ouvi-las fazia meu nariz coçar de imediato e meus olhos lacrimejarem. às vezes, conto algo da minha infância ou da minha adolescência e olho para mim mesma com quase trinta anos e lembro de dom casmurro, quando o bentinho fala da capitu como fruta dentro da casca. nós somos mesmo as pessoas que somos. e olha que a gente muda bastante no caminho. mas muitas promessas estão feitas ali. às vezes boas, às vezes ruins. 

um relatório da infância: fui uma criança quieta e sozinha. ou falante e sozinha. irritantemente falante, esquisitamente sozinha. isso é meia verdade. até os seis anos de idade, quando entrei na primeira série, tive que ser trocada de escola todos os anos, meus pais não davam conta de não apenas eu não fazer amigos como eu ser tratada com tanta, digamos, hostilidade pelas outras crianças. mas eu era chata. coitada. chata e esquisita e gorda para os parâmetros infantis. um prato cheio para uma miríade de apelidos. eu já narrei no twitter, mas na alfabetização, tinha uma paixonite por um rapaz chamado samuel. um dia, queria brincar com ele e ele disse que não. e aí eu disse: mas você está brincando com a fulana (não lembro o nome dela), que é mais feia do que eu (faz-me rir). e aí samuel me deu uma importante lição com sua resposta: mas pelo menos ela não é chata.

ser chato. o crime imperdoável. eu deveria ser muito chata. em algum sentido, ainda devo ser. às vezes acho que sou absurdamente chata com meus textinhos e meus pensamentos. e acho que tudo bem, também. eu consigo ser legal em voz alta. mas acho engraçado que me acho chata de um jeito parecido com o que fui nessa historinha: por que você não quer brincar comigo se eu sou pelo menos bonitinha? mas de volta ao relatório da infância.

na primeira série, 2001, entrei na escola em que fiquei até terminar o ensino médio em 2011. conheci a vanessa na terceira série, em 2003, mas não fomos super amigas de cara, fazíamos parte de um mesmo grupo de menininhas, mas nos estranhávamos, o que é tão engraçado quando eu penso que ela é o amor da minha vida e tudo o mais. mas é, 2003, vanessa, 2004, lucas cordeiro; meus queridos amigos de infância-infância, infância quando você não tem nem dez anos de idade. eu posso me corrigir para dizer que tive uma primeira infância solitária. era conhecida das bibliotecárias e atendentes da cantina. então eu era quieta na escola, mas eu não era quieta de verdade, porque quando encontrava os adultos falava pelos cotovelos. adorava falar com os adultos. adorava que os adultos achassem incrível o fato de eu gostar de ler. os adultos, os adultos. 

ontem vieram me falar que não gostaram de um livro que eu indiquei (o homem não existe, da ligia diniz) porque ela fala demais de si mesma. eu fiquei estarrecida. eu mal tinha percebido isso no livro. acho que ainda não percebo. acho que minha visão é que a autora fala de muitas outras coisas, mas partindo dela mesma, e tudo bem, não? será que fiquei na defensiva? eu estou sempre falando de mim mesma e esperando que isso seja também uma forma de falar de outras coisas. eu estou falando das coisas a partir de mim. porque isso é um blog. que eu escrevo. os meus pensamentos. e tudo o mais. 

sensível demais: as coisas sempre me deslumbram. fico facilmente encantada. por arte, por pássaros. por pessoas na rua e pequenas conversas. eu fico admirada, mesmo, é uma doideira, o mundo é horrível e eu entro em desespero, penso coisas terríveis, desejo a morte de pessoas horríveis. um dia desses, sonhei que estava numa missão com amigos de explodir milhares de bombas em israel. nós iríamos morrer também, mas era isso, o que tem que ser feito. aí, tudo o mais. posso fazer gestos vagos para o entorno e pensarmos em catástrofes climáticas, em super exploração do trabalho, no cansaço eterno de todos nós, as dores do capital, as dores do gênero, as dores da colonialidade, e tantas outras possíveis. tantas maneiras de morrer, de ferir, de sentir dor. entro em parafuso. vejo uma árvore, um pássaro, um amigo, um poema – algo retorna. como pode essas coisas que não salvam o mundo salvarem o mundo? 

fico deslumbrada sobre tudo o que é frágil e que faz. e como é possível que faça. tudo que é nada ou tão pouco e é tanto. não existe salvação. existe salvação. não existe consolo. existe consolo. de novo o riobaldo: tudo é e não é. por que eu estou falando disso mesmo? sempre perdida nos pensamentos. 

quando eu falo, quem lê também sente? eu estou falando tanto de mim. digito tanto a palavra eu. será que soa apenas assim, apenas um murmúrio narcisista e egocêntrico? eu falei na análise essa semana que sentia que... calma. não sei como dizer isso. eu quero dizer que escrever é importante pra mim, mesmo que eu só escreva bobagens. são as minhas bobagens. e eu queria que as minhas bobagens fossem pontes. eu quero escrever e parecer que eu estou falando com você. ou eu quero escrever e parecer que você está falando com você. ou que alguém etc etc. qualquer coisa. eu quero escrever transformando as palavrinhas em pontes. e também que eu sinto que a única coisa que me dizem e que me alegra instantaneamente, é sobre a escrita. toda vez que alguém diz que lê e que gosta eu sinto que posso ser feliz para sempre. que lê e que sente algo. qualquer coisa. 

sensível demais! como é que pode, né. o drummond disse tudo em mundo grande: meu coração não é maior do que o mundo. por isso gosto tanto de me contar. preciso de todos. preciso de todos. 


pensamentos por todos os lados

será que eu sou legal? será que eu sou bonita? será que eu sou simpática? ou: você me acha legal, bonita, simpática, charmosa e boba, boba, muito boba demais da conta por todas essas perguntas? 

hoje eu tive análise e falei pra analista que comeria o pomo da discórdia pra não ter que tomar uma decisão. é mentira. não foi isso o que eu disse, mas assim fica melhor no registro. a verdade é que estávamos falando sobre prêmios, eu comeria o pomo da discórdia pra não premiar ninguém, nem a mim mesma. 

também na análise falei sobre estar escrevendo no blog. sobre estar melhor na dissertação do que já estive antes. bom, alguma coisa é melhor do nada, então nesse sentido estou mesmo melhor na dissertação. mas falei sobre essa coisa do ritmo da escrita. como aqui eu fico feliz pela liberdade. meus parágrafos parecem não ter conexão alguma. posso pular de tópico em tópico sem medo de cair. hoje eu escrevi um pouco bem pouco na dissertação, mas de novo, um pouco bem pouco é melhor do que nada, e agora estou escrevendo aqui porque estou inquieta e quando fico inquieta parece bom escrever pra melhorar. 

quando eu tinha catorze anos, vivenciei um pequeno milagre. acordei um dia e as palavras soul meets body estavam na minha cabeça. a explicação racional é que era o título de alguma fanfic na qual passei os olhos, mas não li. na minha explicação, deus sussurrou isso para mim enquanto eu dormia. joguei essas palavras no google e depois no ares (saudoso ares), e aí falei com meu amigo lucas cordeiro sobre a existência de uma banda recém descoberta chamada death cab for cutie. ficamos pesquisando e ouvindo músicas juntos, compartilhando a experiência pelo msn. 

eu estou com sono e assistindo um episódio da reprise de américa no viva. querendo saber se é hoje que o tião vai montar no touro bandido. teve um dia que eu fiquei muito triste assistindo um episódio em que o tião e a sol estavam conversando e sol dizia que amor passava, sim, porque o amor dos dois tinha passado. e o tião, que ama a sol pra sempre, ficava consternado, e dizia que amor de verdade não acabava nunca. tudo me deixa triste: o amor acabar e ele não acabar. as duas opções. mas a verdade é que acaba, e que às vezes, quando acaba, é muito bom. e aí eu fico triste que seja tão bom o fim do amor. 

talvez ele não monte no bandido hoje. não parece algo que acontece em uma segunda. 

eu parei de escrever ontem isso, meia-noite, para ir dormir. nem vi se o tião montou ou não no touro bandido, mas acredito que não. agora são quase quatro horas da tarde e estou no trabalho, sentada com um livro no colo. muitas vezes me vejo na situação de sentada com um livro no colo, ou diante de um livro, e mexendo no celular. pobres livros. a atenção parece ser a coisa mais importante do mundo. aquela frase da simone weil. aqueles versos da ana cristina césar. em um texto lido para uma matéria, a filha falando do aprendizado da mãe, que não passou por vias formais: ela ouvia a televisão e prestava atenção. olhar para as coisas de verdade. ouvir as pessoas de verdade. estar diante de um livro com a cabeça nele e não na rolagem sem fim da internet. às vezes, eu simplesmente aceito a derrota: tem dias em que a dispersão vai vencer. tem dias em que eu quero lutar por um pouco de atenção. e tem dias em que a atenção cai sobre mim como um presente divino, um raio luminoso, eu não preciso de esforço algum para ela, ela é total e presente, e deliciosa. tenho aberto o blog pra escrever em momentos de dispersão porque é uma maneira de me concentrar nos meus pensamentos, ainda que eles estejam em todos os lugares. pelo menos aqui eu sou obrigada a uma ordenação.

hoje eu tweetei muito: uma forma de escrever a dissertação, escritura comparada, olhando o quanto um amigo meu no doutorado escreveu na dissertação dele. me acalma ver que dá pra cumprir curtas etapas. também falei da minha vergonha em ter falta de vergonha. para algumas coisas. claro. sinto que ficaria pelada na frente de todos os meus amigos mais próximos sem nenhum problema. ontem fui tatuar o peito e perguntei pra tatuadora se ela achava que eu precisava cobri-los de alguma maneira, a fim de não ficar constrangida. também tenho pouca vergonha em ter algumas conversas. como: posso te beijar? você quer isso aqui? você ainda quer isso aqui?, minha vergonha maior é pensar: meu deus. eu deveria ter vergonha do que estou dizendo. do corpo que estou mostrando. de falar tanta bobagem em voz alta. outro dia, conversando com a professora que eu amo, perguntei a ela: você acha que eu deveria ter mais medo?

isso dá uma impressão errada sobre mim. é uma confusão, na verdade. eu disse que tenho vergonha de não ter vergonha, mas, claro, eu também tenho a vergonha do primeiro grau. e eu também tenho muito medo. de muitas coisas. o principal deve ser o medo mais genérico de todos, medo de viver, ou então medo de estar vivendo errado. medo de estar vivendo errado e só me dar conta daqui a muitos anos. Porque agora, agoríssima, não parece que estou vivendo errado. Mas vai que eu estou e eu não sei. Vai que eu estou passando vergonha e eu não sei. Vai que eu estou sendo ridícula e eu não sei. Então tudo pode ser extirpado até isso aqui: medo de não saber. O medo mais bobo de todos. Digo bobo porque não saber é o estado principal de tudo. Você não sabe. Aí você descobre, ou pensa, ou se pergunta, ou pesa; aí você sabe alguma coisa, enquanto também não sabe tantas outras. Pra que ter medo? Eu escrevo essas coisas e o medo inteiro passa, menos o medo de não ter medo. Eu deveria ter mais medo? Eu deveria ter mais vergonha? Eu deveria me preocupar mais? Eu estou me dedicando ao imenso prazer de inventar problema onde não existe? Ou a angústia é real. Ainda que desnecessária. Simplesmente isso. 

percebi que usei letras maiúsculas no parágrafo anterior só agora. que coisa doida. o que será que aconteceu no meu pensamento? 

outro tweet que eu fiz hoje é que eu gosto muito que animais brinquem. eu gosto mesmo. me dá uma alegria sem igual. é bom brincar. os animais brincam. os animais se divertem. os animais se divertem juntos. isso não é incrível? isso não é bonito? esses animais que somos nós inventaram muitas formas de diversão. os outros devem ter inventado as suas também. os animais vivem e eles brincam e isso é lindo. 


um estudo sobre mãos

estou roubando esse título. embora não pareça ser um título nada complicado, quero deixar o registro de que, em 2013, a amiga de brasília com quem eu não me sentia tão bem escrevia uma narrativa autobiográfica sobre seu romance com um outro brasileiro que ela conheceu em londres. ela escrevia em inglês, e o título, claro, era a study about hands. eu me sentia muito comovida pela história. queria ler os acontecimentos e queria ler como ela via os acontecimentos. ela não revogou meu acesso ao documento, então ano passado, dez anos depois da nossa breve amizade, eu lembrei da existência do estudo sobre as mãos daquele rapaz e fui reler. tinham algumas coisas novas. gostei de ler as coisas novas, que não sei o quão novas eram, de fato. gostei de reler o que já sabia, também. eu gostava do nome. um estudo sobre mãos. ela também escrevia fanfic, claro. seu casal principal de fanfics era jon/arya. 

eu também queria fazer um estudo sobre mãos. um estudo sobre as minhas mãos: depois de começar a trabalhar na livraria, vivo com as unhas quebradas, com cortes de papel, com pequenas ranhuras e machucados que arranjo mexendo em prateleiras e em caixas de livros. um estudo sobre o tempo: poucas coisas me fascinam tanto quanto o fato de que é possível contar se um mês tem trinta ou trinta e um dias no calendário que adotamos pelos ossos das mãos, e que está contemplado o fato de que julho e agosto são meses seguidos de trinta e um dias, e que os meses de trinta e um dias ficam com o osso. um estudo sobre o amor: na falta de palavras, doar o corpo como apoio, e as mãos são tão representativas desse apoio; elas secam as lágrimas, elas seguram, elas amparam, elas tocam. quando no inferno, dante é segurado por virgílio e tem seus olhos tapados para que não veja a medusa. as mãos protegem. quando se é criança, as mãos estão sempre machucadas, ou é impressão? as mãos com farpas, a pele arranhada, mordidas e cascas de feridas, a ausência de marcas aleatórias e de origem desconhecida como fim da infância, os adultos tendem a rastrear todos os próprios machucados.

gosto de ver as mãos se mexendo enquanto alguém fala. penso nas mãos da professora que eu amo, ela é toda pequenininha, suas mãos são minúsculas, quando está escutando alguém falar em sala de aula os dedos ficam pousados sobre a boca, pensando, pensando. as mãos de uma poeta que esteve ontem na livraria em que trabalho, seus dedos longilíneos, gesticulando ao falar sobre perder a calcinha em uma festa porque também já foi jovem. segurar as mãos de amigos enquanto falamos algo de muita importância, ou pouca. segurar as mãos para dançar. olhar as mãos de quem desejamos, mãos que se apresentam cheias de promessas inconfessáveis, vontade de consumir: quero colocar suas mãos na minha boca. quando estou de frente para o computador, lendo algo, mordo a minha mão o tempo inteiro, gesto esquisito e nervoso, que antecede a escrita de algo. preparando comida, minhas mãos ou outras, o ritmo dos cortes, o manejo da faca, das colheres, como as mãos pegam o sal. em tudo e tão importantes, até mesmo para escrever isso aqui, olho para elas, acostumadas ao teclado. quando eu era criança e adolescente, escrevia tanto à mão que meu dedo médio tinha um eterno calo, o calo de onde ficava o lápis. uma vez um amigo meu, o átila, disse que era um calo de escritora e eu me senti muito orgulhosa dele, meu calo de escritora, e sorria satisfeita pensando que minha mão direita sempre o teria. hoje não há calo algum, não mais a perfeita bolinha que era, mas se eu olhar o suficiente consigo pressentir um pequeno inchaço ali, ou fingir que ainda há a sombra do calo que me acompanhou por tanto tempo.

se eu fizesse um estudo sobre mãos, iria querer me demorar nas mãos que fazem o que eu gosto: o cuidado com a comida, o cuidado com a escrita, o cuidado com o toque. as mãos que tiram beleza do ar: mãos quem toca música. deve ser uma maravilha ter habilidade com instrumentos, saber segurá-los, saber como e o que fazer para que se produza música. sempre fico fascinada vendo pessoas tocarem violões, pianos, violinos, qualquer coisa. até um instrumento de sopro, que mobiliza outras partes do corpo, também tem que ser segurado, pressionado dessa ou daquela maneira. os dedos correm rápidos e sabem para onde ir sem hesitação. os dedos se atrapalham e vão para onde devem ir com hesitação. às vezes, dão no lugar errado e aí nos cortamos ou erramos a nota. eu adoro romantizar o fracasso e o erro, então há beleza no tropeço, na mão que não segura com força suficiente e deixa cair, em quando pegamos algo achando que será pesado e é leve. até mesmo um carinho pode incomodar. 

essas palavras que estão na minha cabeça vão para fora dela por ordenação das mãos. um estudo sobre a raiva. quando estive cheia de ódio e de tristeza e tudo o que eu queria fazer era poder usar minhas mãos para destruir algo, tudo, a mim mesma. rasguei e amassei muitos papéis. um estudo sobre mãos que aprendem a conter a própria violência. um estudo sobre mãos que não aprendem a conter a própria violência. um estudo sobre mãos enquanto horror. um estudo sobre mãos enquanto falta de cuidado, e sufocamento, e dor. um estudo sobre o que mãos podem e não podem ser, podem e não podem fazer. estudar as minhas mãos e tudo de bom e de ruim que cabe a elas. estudar as suas mãos e descobrir o bom e o ruim contido nelas. 

cogitando ser narcisista do jeito não doentio (talvez) pelo tanto que eu gosto de falar

estou querendo sair pra dançar. 

como uma pessoa que se recuperou da timidez, mas ainda não completamente, dançar é algo difícil pra mim. em uma festa, é preciso uns instantes até que eu consiga me soltar. e pode ser que nem aconteça de. eu lembro a primeira vez que eu dancei em uma festa. foi em uma balada no ano de 2014. eu ainda tinha dezenove anos. minha amiga mercúrio tinha recém feito dezenove anos também. o lugar era no rio vermelho. estava tocando rockzinho indie da época. estávamos com outras pessoas, leonardo, um amigo de mercúrio, e acho que mais alguém, ou alguéns, talvez pessoas mais próximas do leo, mas eu não consigo lembrar bem de ninguém além dela. lembro de estarmos uma de frente para outra. tenho certeza de que, obviamente, em algum momento tocou what you know

lembro de estar muito feliz.

eu estava muito feliz porque estava com ela e porque estava dançando com ela e porque estava dançando. e eu nunca tinha conseguido dançar em festas. eu sou desengonçada. e sou grande. me falta ritmo para bater palmas, até o coração deve bater descompassado. dançar me parecia impossível: eu não sei me mexer. eu ainda não sabia me mexer, lá. eu ainda não sei me mexer, aqui. mas mesmo sem saber, fazemos as coisas. eu não sabia me mexer, mas sabia pular e cantar as músicas, e sabia segurar as mãos de mercúrio, e desorganizadamente, sem graça alguma, meu corpo descobria o prazer dessa alegria tão pura, tão fácil uma vez que você começa. bastava o primeiro passinho. fiquei molhada de suor. ficamos molhadas de suor. ficamos cansadas. subimos pro segundo andar da boate, eu me deitei em cima da mesa, ou mercúrio se deitou em cima da mesa, e mercúrio se deitou sobre mim, ou eu me deitei sobre mercúrio, como coalas, ela disse na época, como coalas, eu repito dez anos depois. e aí, cercadas por toda aquela música, com os músculos doloridos, dormimos.

dormir depois de dançar é muito bom. eu ainda me surpreendo, com um enorme sorriso, que tenhamos dormido ali. fomos acordadas por um dos seguranças, avisando que o local ia fechar. duas garotas de dezenove anos, destinadas a dormirem juntas por cima de uma mesa por cima da outra em uma boate no rio vermelho. eu amo você, mercúrio. quero dançar com você de novo.

seria bom poder escrever que dançar com mercúrio me destravou para dançar em qualquer lugar, mas não foi assim. por muito tempo, dançar com mercúrio foi ter dançado. eu dizia a ela: eu nunca tinha dançado antes, não assim. o mundo se abre quando você dança com alguém que ama. 

depois de um tempo, comecei a conseguir dançar. nunca fui em muitas festas na vida. muitas vezes fui para ficar parada. algumas vezes conseguia dançar. acho que agora consigo dançar quando vou em festas porque vou com esse objetivo na cabeça: eu vou dançar. eu vou dançar e vai ser ridículo e vai ser legal, porque eu não tenho medo de ser ridícula. ou melhor, eu até tenho, mas não importa, e não importar é fundamental para os medos ridículos. eu quero muito sair pra dançar. alguns dias depois de terminar um namoro, saí pra dançar com amigos. uma coisa bem fest de la fest, mas os ingressos estavam comprados antes do fim do namoro, se isso conta para algo. de toda forma, a sensação foi tão intensa, de um jeito tão óbvio e tão clichê. era fundamental estar ali dançando e pulando e cantando. quando cordeiro e koba vieram me visitar de são paulo, fomos em festas dois dias seguidos. foi uma coisa doida. foi uma delícia. minhas panturrilhas doíam e fiquei dias sem voz. queria tudo isso de novo.

eu acho que uma das coisas boas, realmente boas, de ficar mais velha é que mesmo que seu corpo fique mais cansado, dá pra fazer mais do que se fazia com dezenove anos. pelo menos, eu. lamento um pouco por todo o tempo dos vinte anos que não dancei. tantas oportunidades perdidas. mas agora eu danço! pateticamente. e feliz.

minha garganta está horrível pela amplitude térmica enfrentada num mesmo dia

 estou decidida a ir embora de brasília.

essa decisão não é nada súbita. é uma decisão para daqui a dois anos, ou talvez até mesmo quatro, dependendo do andamento do doutorado (sim, é pra rir mesmo: mal dou conta da dissertação e já estou pensando nisso). é para daqui a tanto tempo que é um bom tempo de preparação e planejamento, e também tempo suficiente para que no fim das contas eu nem vá embora de brasília por uma razão ou por outra. enfim, é um plano esquisito. um plano que tinha sumido dos meus pensamentos.

antes, preciso fazer uma recapitulação.

vim para brasília com dezessete anos. fevereiro de 2012. quando eu morava em fortaleza, vivia falando sobre ir embora. era fascinada por isso. em um dos meus cadernos, havia a história de uma menina que ia estudar letras em ouro preto, saída do ceará, sozinha, indo morar em uma república com todo tipo de universitário divertido. um pouco diferente de ir estudar direito em brasília morando com seus pais. mas ainda assim, havia algum ideal sobre partir. eu parti. foi terrível. é até engraçado olhar para trás agora, após o efeito anestesiante do tempo: como pode ter sido tão terrível? isso pode parecer chocante, mas eu era tão tímida que não conseguia sair da sala para fazer xixi ou comprar algo pra comer. tinha vergonha de ser vista me movendo. ao mesmo tempo, não tinha vergonha de achar todo mundo da minha sala um bando de reacionários estúpidos e brigar com eles em quase todas as aulas, sempre fazendo questão de registrar em voz alta que todos seriam péssimas aquisições para o já tenebroso mundo jurídico. então talvez por isso fosse terrível. (observação: adicionar "risos" ao final do parágrafo).

eu sentia, quando em brasília, que minha vida estava suspensa. quero dizer: minha vida era em fortaleza, quando eu ia lá nas férias, e em brasília... em brasília, os dias eram embaçados. eu não devo ter tentado direito cultivar uma boa vida aqui assim que cheguei. ou eu tentei do jeito que dava na época e não consegui. poucas pessoas legais. e, como eu disse, eu era tímida. no final de 2013, arranjei alguns amigos pra fazer, mas era uma amizade esquisita, em que eu constantemente me sentia não exatamente bem. não durei muito com esses amigos. eu tinha uma conta no twitter feita em 2009, mas em 2013 realmente comecei a usá-la. uma informação fundamental para como se desenvolveu minha personalidade a partir dos dezenove anos.

sentir que minha vida era em fortaleza e que em brasília eu estava apenas passando (ou perdendo) tempo, obviamente, não era algo que funcionaria a longo prazo. eu ia visitar meus amigos no ceará e a vida deles de fato era lá, e o contraste me fazia perceber com susto que a minha não. ela agora não parecia ser em lugar algum. a partir de 2014, as idas à fortaleza eram mais escassas. eu também fiz três (!) amigas no curso de direito. luísa, juliany e ana paula. juliany é uma pessoa queridíssima com quem eu raramente falo, mas por quem eu ainda tenho muito carinho. luísa é uma desgraçada que eu espero que tenha uma vida triste e miserável e tão minúscula quanto ela (sentimentos positivos aqui!). e ana paula é alguém com quem eu ainda converso de vez em quando, e que amo, e que me diverte demais. mas eu constantemente falava, na análise, que embora as amasse muito e ficasse feliz, era como se houvesse uma barreira entre nós. eu não sabia o que. talvez uma resistência minha, mesmo. talvez porque eu não tivesse como falar de fanfics e sonhar em beijar personagens na boca com elas. nunca se sabe.

a sensação era de rejeição mútua. cheguei em brasília de coração aberto, talvez a cidade estivesse de coração aberto para mim, também (afinal, depois esteve), mas nos estranhamos. nós nunca vamos dar certo, querida, eu diria para brasília. a ideia de ir embora era constante. em 2015, minha vida ficou obsessivamente online. mas pelo menos eu conheci a marina. sinto que estou sendo injusta com meu amigo andré vinicius, que eu conhecia porque se apaixonou pela minha escrita via blog da adolescência e com quem eu vivi uma história trágica e engraçada aos dezesseis anos. faço uma pausa, olhando esses parágrafos todos: para que entrar em tantos detalhes sobre catorze anos de vida em brasília? e aí sorrio satisfeita comigo mesma, pensando: ah, tá. isso é só mais um textinho de diário. deixa de ser doida. andré vinicius, eu amo você, caso você esteja lendo isso. mas as coisas eram estranhas! você sabe como eram.

em 2016, duas coisas muito importantes aconteceram: eu terminei a faculdade de direito e entrei na faculdade de letras. isso é uma coisa. a outra coisa é que uma pessoa chamada mercúrio barros também entrou em letras na unb, em 2016. para falar de mercúrio, eu teria que escrever muitas e muitas páginas. ela me conheceu em 2010; também apaixonada pela minha escrita no meu blog da adolescência. engraçada a repetição desse tema, que ela inaugurou. eu a conheci em 2011, quando ela falou comigo fora do anonimato. eu pisei terrivelmente na bola com mercúrio, no período em que ela morou em brasília. está tudo explicado e resolvido, mas ainda assim, constantemente tenho a sensação de que poderia ter começado a amar a cidade ali, quando ela estava nela. não foi o que aconteceu. 

acho que eu e marina começamos a ficar mesmo próximas em 2017, mas foi em 2019 que tudo pareceu mais firme, mais estabelecido. a marina fazia faculdade em goiânia, então eu a via muito esporadicamente. em 2017, fiquei amiga de um rapaz chamado gabriel, foi uma linda amizade, brigamos terrivelmente ao final. em 2019, conheci os avalovarers, matheus, karol e gabi, além da luciana, professora tornada amiga, e aí tudo fez sentido. em 2020, mandei um áudio pra uma taróloga do twitter, a sacha, e hoje eu a amo. e aí depois, eu não sei, algo destravou, algo que, claro, bem, houve a pandemia. mas antes da pandemia, eu disse aos meus avalovarers que era a primeira vez que eu ia pra unb tendo pessoas que amo pra reencontrar. 

a unb também é importante. eu amo a unb. eu amo estar na unb, queria poder passar o dia inteiro lá. tudo fica meio misturado: é claro que brasília começou a mudar quando eu comecei a amar pessoas e lugares, e amar algo além do céu tão obviamente bonito daqui, amar as árvores, amar caminhar entre as quadras. com um processo de fogo lentíssimo, a cidade se descortinava diante dos meus olhos. rafaela, pedro, camile, ludimila, breno, ana cláudia, lucas salomão, danna, dan, mayara, lenio, joão, bernardo, gabriel, anna beatriz, marianna, carol. até meu amigo gabriel cameio, amigo desde 2017 no twitter, veio morar aqui, por amor. do nada, mas lentamente, a cidade cheia de pessoas que eu amo, eu amo, eu amo. contando uma história para o cameio, narrando dos meus amigos, ele dizendo: são amigos demais. são amigos demais! meu deus. eu agradeço. 

essa parte ficou toda misturada. é que antes tudo era tão terrivelmente parado e tão distante de mim que é muito mais fácil separar em parágrafos, explicar ordenadamente. se eu quiser, eu explico como cada uma dessas pessoas chegou na minha vida. mas eu não preciso, eu gosto da parte misturada, e parecer que foi súbito, que tudo chegou de uma vez, que 2019 abriu uma espécie de portal feito pela proximidade de passar seis horas sentada num café com a marina e ler avalovara com pessoas desconhecidas que se tornaram pessoas tão amadas. 

esse texto é um texto de amor esquisito pra brasília. porque eu vou embora e não quero fazer uma homenagem só quando eu for embora. porque eu nunca escrevi pra brasília e porque eu sempre escrevo sobre fortaleza. porque brasília é uma cidade difícil, mas é a cidade em que me tornei adulta. cheguei aqui com dezessete anos, daqui a uns meses farei trinta. eu aprendi a ser adulta aqui. eu me tornei essa que eu sou agora por um monte de fatores, e um deles é brasília. escrevo tanto sobre os meus amigos de fortaleza, sobre como eles me formaram, sobre como muito do que eu sou no sentido mais fundamental é graças a eles. nunca escrevi sobre como amo, como amo e sou grata, e amo e sou moldada, e amo e espero tanto pelo próximo encontro, o próximo bar, o próximo café, o próximo esbarrão com os amigos daqui. 

antes, quando pensava sobre ir embora de brasília, isso vinha de uma rejeição enorme da cidade. uma cidade em que eu jamais poderia ser feliz. uma cidade em que eu jamais encontraria pessoas pra amar, pessoas que me amassem. é tão bom que isso não seja verdade. brasília me ensinou outras formas de amor. como custou, e como agora parece estar em todo lugar.

é engraçado que eu aprendi a ser sozinha aqui. realmente só, de um jeito dolorido. agora é outra coisa. eu até sei fazer as coisas sozinha, ainda. mas prefiro não. e tem quem venha comigo. 


enquanto tudo passa rápido na estrada

parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudess...