um estudo sobre mãos
estou roubando esse título. embora não pareça ser um título nada complicado, quero deixar o registro de que, em 2013, a amiga de brasília com quem eu não me sentia tão bem escrevia uma narrativa autobiográfica sobre seu romance com um outro brasileiro que ela conheceu em londres. ela escrevia em inglês, e o título, claro, era a study about hands. eu me sentia muito comovida pela história. queria ler os acontecimentos e queria ler como ela via os acontecimentos. ela não revogou meu acesso ao documento, então ano passado, dez anos depois da nossa breve amizade, eu lembrei da existência do estudo sobre as mãos daquele rapaz e fui reler. tinham algumas coisas novas. gostei de ler as coisas novas, que não sei o quão novas eram, de fato. gostei de reler o que já sabia, também. eu gostava do nome. um estudo sobre mãos. ela também escrevia fanfic, claro. seu casal principal de fanfics era jon/arya.
eu também queria fazer um estudo sobre mãos. um estudo sobre as minhas mãos: depois de começar a trabalhar na livraria, vivo com as unhas quebradas, com cortes de papel, com pequenas ranhuras e machucados que arranjo mexendo em prateleiras e em caixas de livros. um estudo sobre o tempo: poucas coisas me fascinam tanto quanto o fato de que é possível contar se um mês tem trinta ou trinta e um dias no calendário que adotamos pelos ossos das mãos, e que está contemplado o fato de que julho e agosto são meses seguidos de trinta e um dias, e que os meses de trinta e um dias ficam com o osso. um estudo sobre o amor: na falta de palavras, doar o corpo como apoio, e as mãos são tão representativas desse apoio; elas secam as lágrimas, elas seguram, elas amparam, elas tocam. quando no inferno, dante é segurado por virgílio e tem seus olhos tapados para que não veja a medusa. as mãos protegem. quando se é criança, as mãos estão sempre machucadas, ou é impressão? as mãos com farpas, a pele arranhada, mordidas e cascas de feridas, a ausência de marcas aleatórias e de origem desconhecida como fim da infância, os adultos tendem a rastrear todos os próprios machucados.
gosto de ver as mãos se mexendo enquanto alguém fala. penso nas mãos da professora que eu amo, ela é toda pequenininha, suas mãos são minúsculas, quando está escutando alguém falar em sala de aula os dedos ficam pousados sobre a boca, pensando, pensando. as mãos de uma poeta que esteve ontem na livraria em que trabalho, seus dedos longilíneos, gesticulando ao falar sobre perder a calcinha em uma festa porque também já foi jovem. segurar as mãos de amigos enquanto falamos algo de muita importância, ou pouca. segurar as mãos para dançar. olhar as mãos de quem desejamos, mãos que se apresentam cheias de promessas inconfessáveis, vontade de consumir: quero colocar suas mãos na minha boca. quando estou de frente para o computador, lendo algo, mordo a minha mão o tempo inteiro, gesto esquisito e nervoso, que antecede a escrita de algo. preparando comida, minhas mãos ou outras, o ritmo dos cortes, o manejo da faca, das colheres, como as mãos pegam o sal. em tudo e tão importantes, até mesmo para escrever isso aqui, olho para elas, acostumadas ao teclado. quando eu era criança e adolescente, escrevia tanto à mão que meu dedo médio tinha um eterno calo, o calo de onde ficava o lápis. uma vez um amigo meu, o átila, disse que era um calo de escritora e eu me senti muito orgulhosa dele, meu calo de escritora, e sorria satisfeita pensando que minha mão direita sempre o teria. hoje não há calo algum, não mais a perfeita bolinha que era, mas se eu olhar o suficiente consigo pressentir um pequeno inchaço ali, ou fingir que ainda há a sombra do calo que me acompanhou por tanto tempo.
se eu fizesse um estudo sobre mãos, iria querer me demorar nas mãos que fazem o que eu gosto: o cuidado com a comida, o cuidado com a escrita, o cuidado com o toque. as mãos que tiram beleza do ar: mãos quem toca música. deve ser uma maravilha ter habilidade com instrumentos, saber segurá-los, saber como e o que fazer para que se produza música. sempre fico fascinada vendo pessoas tocarem violões, pianos, violinos, qualquer coisa. até um instrumento de sopro, que mobiliza outras partes do corpo, também tem que ser segurado, pressionado dessa ou daquela maneira. os dedos correm rápidos e sabem para onde ir sem hesitação. os dedos se atrapalham e vão para onde devem ir com hesitação. às vezes, dão no lugar errado e aí nos cortamos ou erramos a nota. eu adoro romantizar o fracasso e o erro, então há beleza no tropeço, na mão que não segura com força suficiente e deixa cair, em quando pegamos algo achando que será pesado e é leve. até mesmo um carinho pode incomodar.
essas palavras que estão na minha cabeça vão para fora dela por ordenação das mãos. um estudo sobre a raiva. quando estive cheia de ódio e de tristeza e tudo o que eu queria fazer era poder usar minhas mãos para destruir algo, tudo, a mim mesma. rasguei e amassei muitos papéis. um estudo sobre mãos que aprendem a conter a própria violência. um estudo sobre mãos que não aprendem a conter a própria violência. um estudo sobre mãos enquanto horror. um estudo sobre mãos enquanto falta de cuidado, e sufocamento, e dor. um estudo sobre o que mãos podem e não podem ser, podem e não podem fazer. estudar as minhas mãos e tudo de bom e de ruim que cabe a elas. estudar as suas mãos e descobrir o bom e o ruim contido nelas.
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