outros jeitos de usar a boca? não, obrigada
você tem doze anos e quer beijar o seu melhor amigo. você mentiu para o seu grupo que já tinha beijado de língua um rapaz que conheceu em sobral nas últimas férias. vicente, o nome dele. coitado. vicente era muito simpático e vocês tomaram banho de rio e ele deveria ter uns dezesseis, dezessete anos e durante um dia inteiro você se apaixonou profundamente por ele e adoraria que ao final do dia, sentados nos balanços, vicente fizesse que nem nos livros e nas fanfics que você lê e se inclinasse e segurasse seu queixo e explorasse sua boca com a língua ou outro jargão do tipo. não foi o que aconteceu. então de volta à escola e ao seu melhor amigo e ao fato de que você nunca beijou na boca, mas ou ninguém sabe ou todo mundo desconfia que você está mentido, e ele nunca beijou na boca e todo mundo sabe. vocês começam a dar selinhos muitas vezes. é uma época importante na escola, o festival de artes e criatividade. legal. você quer saber é de beijar na boca. esse período vai fazer com que uma chama eterna se acenda no seu cérebro: beijar na boca é muito legal. ainda que apenas selinhos. sempre bom ter um beijinho pra dar. um dia, o grupo de amigos, ou você e seu melhor amigo, ou todo mundo, define que é chegada a hora do temeroso beijo de língua. vocês vão para o quarto de um dos amigos. vocês se olham tensamente. vocês se beijam de língua na medida do possível. nessa época, você já tinha lido todos os livros d'os karas, do pedro bandeira, e lembra que no droga de americana o miguel descreve o coração dele batendo como um carneirinho. essas palavras surgem na sua mente porque é impossível não perceber, dada a proximidade, o quanto o coração de vocês pula. nervosismo puro. é tanto medo que mal dá para se derramar nas mecânicas do beijo na boca de língua direito. vocês se afastam e se abraçam com os corações de passarinho assustado piando um para o outro.
você tem treze anos e quer beijar sua melhor amiga. isso não te choca muito, não. você é muito fanfiqueira para qualquer tipo de julgamento moral sobre si mesma ou sobre os outros. calma, correção. claro que você tem julgamento moral sobre os outros: as patricinhas e os meninos chatos do futebol não merecem perdão algum no seu coração. você está sentada perto de uma fonte do shopping com ela e com algum receio informa que acha que quer beijar meninas. um receio que existe porque existe, mas que na sua cabeça já não faz nenhum sentido. vocês passam grande parte do dia pensando sobre homens beijando homens e mulheres beijando mulheres. todos aqueles ninjas adolescentes de konoha precisam extravasar suas tensões uns com os outros, afinal. e vocês adolescentes na escola também. um dia, ela vai dormir na sua casa e você pergunta (você pergunta! que divertido: as promessas de quem somos.): você quer saber se você gosta de beijar meninas também? a gente se beija e se você quiser parar. reticências no ar. muito mais nervosismo do que com o seu melhor amigo, mas também menos nervosismo porque você agora você sabe mais ou menos o que fazer com a língua na boca de outra pessoa.
você tem treze, catorze anos e adora beijar seus amigos. seus amigos também adoram se beijar. essa aí é a verdadeira anarquia relacional, diria um namorado seu muitos anos depois. vocês eram melhores amigos. vocês escreviam fanfic. vocês ouviam música. vocês beijavam na boca. você também queria a experiência de beijar na boca de outras pessoas. que não te entendessem mal: beijar os amigos era uma maravilha. descoberta da sexualidade com segurança e confiança. mas onde estava o romance? todos aqueles livros e todas aquelas fanfics faziam você desejar constantemente pelo arrebatamento total da alma. aos catorze anos, você se apaixonou de verdade pelo álvares de azevedo. não como um poeta (embora no futuro você vá adorar, particularmente, comer poetas), mas como o rapazinho traduzido em rapaz emo no futuro, que ele deveria ser. era importantíssimo, fundamental se perguntar e perguntar aos seus amigos: vocês acham que o álvares de azevedo iria se apaixonar por mim de volta? seu melhor amigo, o do primeiro beijo, responde que sim, se ele conversasse com você, é claro que ele iria se apaixonar por você. mas muitas pessoas conversavam com você e elas não se apaixonavam por você. chocante.
você tem catorze anos e elege um dos meninos nerds como potencial amoroso. bom, vamos lá: o que é ser nerd em 2008 não é a mesma coisa que ser nerd em 2024. naquela época, era que o menino gostava de matemática e física. existem múltiplos grupos de excluídos numa sala de aula, o que significa que ninguém é de fato excluído. você e seus amigos esquisitos são esquisitos de um jeito outro que ele e os amigos esquisitos deles. mas, de acordo com seu julgamento moral, qualquer esquisito é bem-vindo e melhor do que os adolescentes normais. você é muito melhor do que os adolescentes normais! porque você gosta de LER! e você também beija na boca! dos seus amigos. mas ainda assim. o melhor dos mundos. mas de volta ao rapaz. você começa a rondá-lo. coitado. um dia, na saída da sala, você comete um ato impensável. uma loucurinha. afinal, todo mundo da sala está lá, as pessoas podem ver, você é maluca? mais cedo naquela semana, você perguntou a ele se ele gostava de uma outra menina. uma menina nerd matemática. ela era uma querida, por onde anda? e alguns dias depois, naquele fatídico dia, ele responde sua inquietação: acho que eu gosto sim dela. final da aula. hora de ir embora. você vai até ele diz: é uma pena que você goste da menina. e taca um beijo na boca do rapaz. sem língua. sai correndo, vermelha, e derruba o volume oito de death note, o com o mello na capa, no caminho. é humilhante ter que parar para recuperá-lo. o dia seguinte é terrível. você escreve uma fanfic shino/ino sobre isso. tem algo muito engraçado em você usar logo a ino, a grande patricinha, como você na fanfic.
existiu um longo e sombrio período sem beijos na boca na sua vida. tempos tenebrosos. beijar na boca é muito bom. sem beijos, mas com um constante desejo de beijos. você mudou de cidade. beijar parecia algo impossível e distante. não era. a lição mais importante que você irá aprender nos seus anos de cidade nova, referente ao tópico beijar na boca, é que gente feia também transa. uma lição libertadora.
bem. você tem dezenove anos e quer beijar sua melhor amiga. vocês se conheceram pela internet. ela foi na sua cidade natal. agora você a visita na cidade natal dela. é noite e ela está te ensinando a fumar. ela acabou de fazer dezenove anos. ela é a pessoa mais bonita do mundo. no final do ano anterior, você beijou pessoas novas. uma garota um pouco mais velha. um garoto um pouco mais velho. você transou com eles (não ao mesmo tempo, embora, a certa altura, eles quisessem), mas essa era a época em você não se importava muito com sexo. você quer beijar a sua amiga. você quer pegar o cigarro das mãos dela e falar para ela te dar um beijo. ou perguntar se você pode dar um beijo nela. muitos anos atrás, ela quis te beijar. você vai descobrir que tem um problema de tempo: desejos desencontrados. é normal, não é? os desejos ficam desencontrados muitas vezes na vida de muitas pessoas. vocês não se beijam e você deseja imensamente uma realidade paralela em que você possa ser repleta dessa coragem tola e quente, que queima tudo pela frente. às vezes, não dá. você sente que o beijo que você daria nela está para sempre preso na sua boca, como um comichão eterno.
você tem vinte anos e quer beijar uma menina que conhece escrevendo rpg de fórum. você tem vinte e um anos e quer beijar o seu melhor amigo da cidade. você tem vinte e dois anos e quer beijar um monte de gente desconhecida que encontra via aplicativos. você quer beijar, de novo, aos vinte e dois anos, o seu novo melhor amigo do curso de letras. você beija todas essas pessoas. será que uma hora você vai querer parar de beijar seus amigos? parece uma construção tão evidente: eu amo muito essa pessoa. ela me diverte incrivelmente. eu adoro falar com ela. logo, eu preciso dar um beijo na boca dela. apenas mais uma forma de carinho. você namora três pessoas na vida: a menina do fórum e vocês nunca falam de beijar outras pessoas, não precisa disso. uma pessoa do twitter, que tem uma relação não-monogâmica de anos, e está meio dado que vocês beijarão outras pessoas. um anônimo do curious cat, e para ele é um crime que você sequer pense em beijar pessoas, ainda que seus amigos, até que ele queira beijar outra pessoa. lições: beijar na boca é um gesto que preciso de um longo estudo sobre. e: alguma hora você vai parar de namorar gente da internet?
você tem quase trinta anos (você tem dito já que tem quase trinta anos faz uns três anos, porque quase algo é assim mesmo. a distância é deliberada. mas agora é seríssimo: mais do que nunca, você tem quase trinta anos) e quer beijar um homem grisalho que vai na livraria. a garota por quem você era levemente apaixonada na época da escola, mas ela tem namorada. uma amiga sua que provavelmente você nunca vai beijar. um amigo seu que provavelmente você nunca vai beijar. dois dos seus melhores amigos de infância, mas aí você fica na dúvida se quer beijá-los ou vê-los se beijando, mas provavelmente é tudo ao mesmo tempo. você tem quase trinta anos e ri muito da própria cara pensando: meu deus, que horas esse afã adolescente vai passar? o tesão é eterno? graças a deus se for, claro, mas é todo mundo assim? você sabe que não: alguns dos seus amigos acham graça de você com você. de alguns, você não considera os gracejos: vocês namoram, você diz. quem pode beijar na boca ou ter a promessa do beijo não pode se divertir às suas custas (só um pouquinho). outros dos seus amigos dizem: ah, é legal, mas eu consigo ficar de boa. você queria ficar de boa, mas você também não fica de boa sobre nada, no geral, então é só mais um braço da sua personalidade.
mesa de bar. você tem quase trinta anos e pensa: ah, eu poderia beijar meu melhor amigo..., e ri sozinha. laudo médico e espiritual: deus depositou milhares de beijos na sua boca. cabe a você distribui-los.
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