enquanto tudo passa rápido na estrada

parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudessem fotografar. um monte de pipas expostas na beira da estrada. as árvores retorcidas. campos de nada. cheiro de queimado e fuligem na terra por muito, muito tempo. um cachorro morto. um pássaro de rabo bifurcado. um ciclista. mercado cebolão. devia ter anotado tudo, a única nota que tomei foi a mais óbvia de todas, olhando o mato passar diante dos meus olhos: ah, é claro. sou eu quem está passando. as árvores se mexem de outras maneiras. sou eu que estou me movendo. pensei em tantas palavras o dia inteiro. por que não escrevi nenhuma? numa vã esperança de que fosse possível remontá-las depois. minha cabeça desfeita pela rapidez de tudo. lembro de pensar: é assim que se abre uma janela? penso no gesto, quadradinho desenhado no ar, você abriu uma janela. sonhei, depois, com uma janela. décimo primeiro andar, era noite, eu olhava por ela, e a floresta entrava pela janela, pela varanda, noite adentro a floresta na sala, até que uma onda do mar quebrava ali, na janela, décimo primeiro andar, uma onda, molhando as árvores de folhas bem escuras, grandes, uma floresta do mundo antediluviano, e o mar, e a água salgada se acumulava nos meus pés. é assim que se abre uma janela? para que entre floresta e mar, ar e água salgada. meu pai, dirigindo na volta, diz para a minha mãe: bota a mão aqui. ela coloca a mão no joelho dele e faz um carinho. ele a olha, risonho, exasperado, exclama: é pra tu segurar o volante, mulher! rio à beça disso. registro duplamente o fato. meus pais são idosos, um dia desses minha mãe disse que achava que ainda viveria quinze anos bem. pensei, e penso: não, não, quinze anos é muito pouco. um-salto-de-peixe. então eles são velhos, e eu olho para os dois. eu olho para os dois. eu olho de novo. fico apavorada com o que ando sentido. tenho vontade de dizer. tenho vontade de perguntar. tenho vontade de confirmar. fui indagada: o que você quer saber? de novo, quero rir, rir muito. o que eu quero saber? o que eu quero saber. tudo. pensamento, sentimento, ideia. as coisas vão se movendo rapidamente diante dos meus olhos. vou calando um monte de palavras que querem e não querem ser ditas. palavras que morrem na barreira dos dentes. ou: i want to say something but shame prevents me. espalmo as mãos vazias, isso é um presente? um presente que não pode, não deve ser recebido, é um presente? sinto vontade de dormir. no balanço do ônibus, fecho os olhos com a cabeça no vidro da janela e a trepidação faz com que os sonhos todos tremam também. posso contar um segredo? a água do mar nos meus pés, a floresta encharcada. há dois anos atrás, o homem que eu amava me chamou de histérica. ou melhor, com alguma impaciência, sussurrou para mim: a definição da histeria é você querer uma coisa sem pedir. essa não é a definição da histeria. talvez essa não seja a exata frase. importa? o que importa? a água do mar nos pés. o homem que eu amava e que já não me amava, e que cansado do meu choro e do meu grito, dizia que a definição de histeria era o que ele achava que eu estava fazendo. eu estava pedindo, eu tenho certeza de que estava pedindo. uma floresta inteira entre pelo décimo primeiro andar. migalhas dormidas do teu pão. observar o olhar do amante se transformar no olhar de um estranho. a definição de histeria é. dois anos atrás, meu cabelo caindo, o sono todo picotado por lágrimas, a pedra no fundo do estômago, o punhal fincado nos pulmões. sendo consumida pelo incêndio dos outros. posso te contar um segredo? nos sonhos do ano seguinte ao dia em que o homem que eu amava disse a definição de histeria é (você), eu sempre perguntava: por quê? por-que-você-fez-isso-comigo. como-você-pode. a floresta entra pela janela. olho para a água do mar cobrindo meus pés. mãos estendidas, nada, nada nelas, além de tudo o que eu gostaria de poder oferecer. o incêndio agora é meu. cheiro de fuligem na estrada. fecho os olhos para preservar as flores e a espuma das ondas. é assim que se abre uma janela?

na ocasião da mudança do meu melhor amigo de infância para outro país

escrevi algo muito parecido com o que desejo escrever hoje no ano passado.

no ano passado, fiz trinta anos. pausa: li um texto de janeiro de dois mil e doze, pouco menos de um mês para eu me mudar para brasília, e o texto é para o meu melhor amigo de infância e o tempo inteiro que eu falo com ele, eu digo tu. tu tinha dito. tu diz que é. tu é meu melhor amigo. penso agora, longe dos dezessete anos, longe de fortaleza: quanta coisa a gente pode perder pelo caminho sem nem sentir. todos os meus textos são cheios de você

no ano passado, fiz trinta anos e também um texto para ti, que faria trinta anos exatos seis meses antes de mim. fico pensando que só quero repetir tudo aquilo que já escrevi. repetindo as palavras:

eu tenho vontade de contar. eu vivo contando. eu repito a cada oportunidade. eu torço para que compreendam que não é uma saudade da adolescência ou da escola ou de qualquer coisa do tipo. digo, claro que é. no limite, é isso. mas não é exatamente assim. é que você tinha que ter estado lá para entender. eu conto essa história uma vez e mais outra e outra ainda. sempre contando. era todo o amor do mundo. você tinha que ter estado lá. tenho vontade de me corrigir. é saudade? se eu não quero voltar no tempo, é saudade ainda? me corrijo de novo. claro que é. não é mandatório da saudade o desejo de retorno. certo? eu gosto da caixa do tempo. isso está ali. intocado. aconteceu e é impossível repetir. eu imagino que eu sinta isso dessa forma porque eu fui embora. eu fui embora, é um corte. vocês continuaram, o cotidiano. não foi assim para mim. então deve ser por isso que é assim pra mim. tento me justificar. tento, à força, com marretadas, pregos, parafusos, furadeiras, canetas e lápis, reformar meu coração: você não pode ser um museu. por que eu já me achava um museu com vinte anos? vontade de rir na minha cara. por que eu já tinha saudade de tudo com quinze anos? você é maluca? tento me tornar apresentável. sorrio com sinceridade: eu também amo aqui. amo quem está aqui agora. alguém ainda quer ouvir essas coisas? acho que não.

e:

vocês ainda me aguentam ouvir falar? se vocês conseguirem, ainda, eu posso continuar falando.

e:

alguém ainda suporta ouvir essas mesmas coisas, de novo e de novo?

e:

eu espero que dê pra entender. ainda dá? se eu jogar todas essas palavras do jeito que sempre fiz — não é engraçado, meu deus, como pode eu continuar sendo uma repetição da figurinha que era, talvez só ligeiramente mais amável, menos terrível, menos irascível, mas ainda a mesma coisa, as palavras, sempre as palavras, tudo se resumindo a isso — você ainda vai entender? não sei se um dia consigo parar com isso. às vezes, quero muito parar. mas isso é mentira. eu gosto das coisas como elas são agora. mas eu gosto de ter vivido o amor como vivi. como vivemos. daqui a mais quinze anos, vou sorrir dizendo: lembra na escola? lembra nas estufas? lembra dos telefonemas? lágrimas escorrendo dos meus olhos, eu vou dizer: uma vez, no meio termo, você com dezessete e eu com dezesseis, nós nos abraçamos na saída do shopping, longamente, e eu pensei: esse é o abraço mais importante da minha vida. 

volto. falo tanto de ser um disco arranhado. repetindo e repetindo as mesmas coisas, vinte palavras girando ao redor da lua. quando escrevi esse texto para [ti], escrevi sem saber que seria professora; sem saber que estaria de novo na escola, escrevi para os [t]eus trinta anos, não para a [t]ua partida. tu vai para outro país! no meu texto de dezessete anos:

– principalmente agora que eu vou embora, tu precisa de alguém que esteja perto, eu acho. 

e:

Tem uma parte em que a Lyra fala algo como “e se nós encontrarmos alguém que gostamos muito, vamos ser felizes com essa pessoa e não ficar pensando como preferíamos estar um com o outro”, e é isso que significa pra mim. Que a gente vai se separar, mas a gente vai se juntar. Que a gente vai encontrar outras pessoas, que um dia talvez nós fiquemos no “oi, tudo bem?” e que exista outro alguém que saiba dos nossos segredos e das nossas vidas, mas que um dia nós existimos e significamos alguma coisa um pro outro. Alguma coisa bem grande.

olha só essas letras maiúsculas. que carta mais engraçada. olha ali aquela frase: agora que eu vou embora. eu fui embora faz tanto tempo! e agora você vai embora. agora tu vai embora. agora meu melhor amigo de infância vai embora, mas isso faz alguma diferença, se eu já fui embora, se ele mesmo já foi embora do ceará para são paulo, e não para brasília? faz alguma diferença se a distância é de quilômetros por terra ou por mar? faz diferença se a distância é de horário, temperatura, clima, idioma, culinária, árvores, pássaros? se já havia distância, muda o sabor da distância?

aos nove anos de idade, prestes a completar dez no final daquele ano, eu conheci o meu melhor amigo de infância. falar algo assim soa um pouco insano. vontade de perguntar para os meus atuais melhores amigos da escola: vocês têm amigos de infância? pessoas com quem vocês aprenderam a amar? 

tu não acha isso doido, bonito? tu me disse: a gente era como uma família, quando falei sobre termos nos traumatizado mutuamente no período da adolescência. como uma família: amor, trauma. me pergunto mais uma vez: a quem interessa qualquer uma dessas coisas, além de mim? se eu falar mais uma vez disso, alguém ainda vai aguentar dançar comigo? todas as lembranças que tu já sabe de cor: estufas, mp3 vermelho, fanfics em cadernos, selinhos durante o festival, o primeiro beijo-de-língua com o coração acelerado no quarto de outro dos nossos melhores amigos (de infância, de adolescência, hoje tudo parece uma coisa só). 

essa semana, a analista me disse que minha barreira entre amor romântico, paixão e amizade é muito tênue. não gosto de socializar as falas da analista. nem sei se é a minha barreira, ou só a barreira. penso em quando olhar para ti era sentir o profundo desejo de ser gostada de volta. como parecia impossível que um dia não fosse assim. que um dia eu não estivesse apaixonada. que engraçado, como é engraçado pensar nisso. hoje é quase um delírio febril: eu fui mesmo tão apaixonada assim? apaixonada, tão apaixonada pelo meu melhor amigo da escola, com suas bonitas sobrancelhas (lembro de ti espantado que as minhas eram macias e as suas, ásperas), seus olhos castanhos, mastigando as tampas das canetas, os puxadores dos zíperes. lembro das broncas que levava de outros dos nossos amigos, os conselhos de superação. lembro daquela troca de sms!, eu já em brasília, decidindo que deveríamos nos afastar e do seu email de vinte e poucos dias depois, desesperado com esse afastamento. lembro da alegria do reencontro. 

pensar no meu melhor amigo de infância é também pensar nos meus melhores amigos desse tempo, meus melhores amigos de fortaleza, meus grandes amigos, meus amigos. toda vez que eu penso que faço parte de pessoas ligeiramente esquisitas da internet (eu não sou esquisita o suficiente), mas também carrego comigo meus amigos da escola, concluo: que bom que é achar as outras pessoas com suas esquisitices da época (tudo tão normal! mangás, fanfics, joguinhos, obsessões por narrativas). o que tu disse? que éramos como família? eu aprendi a amar contigo. eu aprendi a amar com vocês. 

eu aprendi a amar com vocês.

durante muito tempo, foi difícil fazer amizades em brasília. eu era tímida e ninguém era bom o bastante: eu tinha tido o melhor da vida inteira, da vida inteira até os dezessete anos. agora eu amo tantas pessoas! eu amo até pessoas novas. eu amo até novos melhores amigos da escola, do outro lado da sala. eu amo até, eu amo até. aquele rapaz, moço, homem, que era meu melhor amigo na infância, na adolescência, vai se mudar para outro país. isso altera profundamente tudo na minha vida, sem que nada perto de mim se mova. tu já está longe. e vai para mais longe. e aí, do nosso grupinho, temos pessoas em fortaleza, em natal, em são paulo, em brasília, em barcelona. o mundo é sempre gente se espalhando. 

eu quero dizer: boa viagem. e quero dizer: até breve. e: boa estadia, boa vida, boa morada, bons sonhos, bons beijos, paisagens, sons de pássaros, chuva na rua, chaves esquecidas, bons sonhos, boas saudades de casa, daqui, de fortaleza, boa construção de casa, de lar, bons dias, bons alimentos, tudo, sempre tudo, tudo, tudo, do melhor, do melhor possível. eu vou sentir sempre saudade, e eu sempre vou ser feliz: porque tu me ensinou a amar. 

doce, amargo

caminho pela cidade com passos amargurados e os pulmões em chamas. nem é o ar mais seco que já tentei respirar. cada passada um esforço tremendo. bate um vento forte e devastador. bate um sol forte e devastador. de noite, no deserto, fará frio. meu corpo não pode nem suar. penso em um desejo interrompido porque sou tola, penso em um desejo continuado porque fui tola. a boca engole o ar ressecado. a boca: ressecada. encontro ossos nas ruas, coloco-os nos bolsos. encontro folhas mortas, coloco-as nos bolsos. às vezes, acho horrível a colocação pronominal. coloco eles, coloco elas, não soa melhor? canso de ter que inventar palavras, também não consigo mais inventar palavras (inventá-las, no entanto, soa mais bonito do que inventar elas). minha voz sobe arranhando minha garganta, não aguento mais falar. os sons me deixam tonta, não aguento mais ouvir. ponho um seixo na boca e assim torço para selar meu silêncio. vontade de desaparecer, vontade de não ter mais que responder a nada, vontade de dormir dias a fio, de ir embora. com os calcanhares feridos, concluo que esse caminho já não se desvela debaixo dos meus pés. a angústia rói as bordas das minhas costelas. constantemente rio da minha própria cara, todo esse exagero, como se eu não tivesse sorrido, rido, cantarolado. como se, como se. sinto que perdi qualquer coisa irrecuperável. não aguento mais lições de reconstrução, os pedaços não encaixam mais. depois, vão tentar me explicar, mais uma fastidiosa vez, que os pedaços não vão mesmo mais encaixar, que eu posso fazer algo bonito desse desalinho, que bom mesmo não é reconstruir nada, mas construir o novo com fios de ouro. sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde. ossos e folhas mortas, eu também um sorriso morto de palavras mortas. perto de mim e muito distante, canta um pássaro. 

mercúrio ardente

você está completando trinta anos e em breve eu começo a viagem para perto de você. chego no final da data, mas chego. em dois mil e catorze, cheguei um dia depois do seu aniversário de dezenove anos. no dia do aniversário, você nadou até um barco muito longe no mar. fiquei impressionada com isso à época, fico impressionada até agora. você é miudinha, em tamanho físico, embora imensa em todo o resto. penso nos seus braços magros vencendo as ondas. penso no cansaço e na glória de tudo. eu amo o mar, e temo. não consigo me afastar muito da costa, da areia, quando os pés começam a flutuar demais já sou tomada por um grande pânico. por conta de todas as histórias do litoral esburacado de fortaleza, talvez. estar em segurança e um segundo depois, não estar mais. talvez não seja nada disso, nada além de medo e receio dessa imensidão misteriosa, alerta, calma, violenta e, acima de tudo, indiferente. eu carrego o mar no nome e no sol, você é toda feita de ar e chuva, mutável, quem sabe por isso menos medrosa, ou já aprendeu desde muito, muito pequena que não adiantava o medo. penso em você completando dezenove anos e cruzando as ondas. penso em como deve ter sido o caminho de volta, o ardor nos braços ao enfim chegar na areia. penso que já faz onze anos disso, e que nos encontramos em outros lugares depois, todos mundo longe do mar. você está completando trinta anos. como era a conta? você me conheceu um ano antes de eu te conhecer, então você está há quinze anos comigo? e eu há catorze com você. conta injusta, queria ter conhecido antes, quinze anos, dezesseis, dezessete, quem sabe. ainda assim, todos esses anos, uma carregando a outra no coração e na ideia. olha só, a gente cresceu e não é mais adolescente. isso já é verdade há tanto tempo, e agora parece ainda mais verdade, os trinta anos. você, com trinta anos. ó pra isso! penso nos seus olhinhos, sempre seus olhinhos lindos, sanpaku? falávamos dos olhos de tragédia, os três brancos, olhos que anunciavam alguma dor. e também seus olhinhos de ressaca, capitu de mãos dadas com maria serafina. sem tragédias e sem tragadas, penso nos seus olhinhos com amor e com carinho, eles lindos, você linda, a sua voz, o jeito que suas mãos mexem no cabelo enquanto você me conta algo. estar ficando maluca e não estar ficando maluca. ser e não ser maluca. sinto sua falta o tempo todo e te amo o tempo todo, amo tanto que basta pensar um pouco no amor que meus olhinhos pequenos e sem dramas adicionais se enchem de lágrimas. eu amo você, eu amo você. tenho vontade de ser um lugar seguro, um beijo nos joelhos, um abraço forte, um refúgio, um respiro, um carinho. você está completando trinta anos hoje, trinta anos! imagine só. continuaremos andando juntinhas, coalinhas dormindo nas costas uma da outra. sempre ligadas, ainda que distantes. ansiosa pelos próximos dez, pelos próximos vinte, trinta anos, e conhecer você, e reconhecer você, e estar sempre na expectativa real de que vou te ver ainda mais uma vez. feliz aniversário, minha amor, o que mais eu poderia fazer se não uma viagem até você e um post de blog? as coisas que são tão nós. os caminhos e as palavras, que começam e a gente nem sabe pra onde vão, mas sabemos algumas das coisas que vamos encontrar. seus olhinhos nos meus e suas mãos nas minhas. te amo para sempre, para sempre. 

o esforço de dizer

algo que soa cômico, e é, e também é outra coisa: na adolescência, meus amigos e eu éramos parte de uma sociedade secreta de escrita. por uma série de razões, o nome secreto de todos deveria ser composto por uma palavra de sua escolha, precedida por: eros de. sim. eros. e o nome que eu, com catorze anos, escolhi? eros de solidão. 

é cômico, e também é outra coisa. 

tenho me sentido fechando portas. sinto que ano passado, expandi demais. expandi muito. foi lindo, isso. foi lindo e importante. encontrar diferentes amigos com frequência semanal. a professora que eu amo rindo da minha cara dizendo que eu amo gente demais. eu ainda amo gente demais. e aí, alguma coisa – o início das aulas? às vezes, penso que poderia colocar tudo no pacote desse trabalho, daí penso que não faz sentido, não é justo, não pode ser assim. tanta gente com outros tantos trabalhos exaustivos, e muito mais frequentes do que eu estou sendo. fico sem desculpas. talvez apenas com motivos. 

tenho dormido como nunca. tenho falado cada vez menos com pessoas por mensagens. tenho saído cada vez menos de casa. um esforço de cada vez. tento responder na hora, na maioria das vezes. pelo menos, no dia. depende da conversa, depende do esforço de dizer. o esforço de dizer. todos os dias úteis da semana, pelas manhãs: o esforço de dizer. 

que saudade de escrever. é cômico e também é outra coisa: uma infância inteira gasta com a imaginação. com o esforço de dizer. as redações, as fanfics. a adolescência com o calo no dedo, lápis se desgastando, canetas manchando a pele. naquela época, eu escrevia com criatividade. histórias eram imaginadas. situações, personagens. narrando os acontecimentos grandiosos e banais das pessoas que eu inventava e das pessoas que outras pessoas tinham inventado, mas eu que eu tomava emprestadas para mim. sinto que perdi a imaginação, a criatividade, as vidas que podia fazer. agora resta o que quer que seja isso – um eterno diário, um eterno ensaio, uma eterna repetição de tom e de temas. eu e o mundo, o mundo e eu. 

uma repetição: tenho sofrido pelo meu corpo, e sofrido por sofrer pelo meu corpo. creio que tem. a ver com o isolamento, de alguma maneira. me sinto ridícula e repetitiva mais uma vez, sempre ridícula e repetitiva: isso, ainda? de novo? logo eu, que quero reabilitar a feiúra? até quando isso vai continuar? impossível, constato mais uma vez, separar mente e matéria: o corpo sou eu, eu sou o corpo. nos abrimos, nos isolamos. qual o sentido dessa angústia? quase apago esse parágrafo, que poderia ser muito, muito maior, e desisto de desistir. o esforço de dizer, porque o que eu quero dizer é chato e eu estou cansada. 

sinto vontade de falar dos meus alunos. falar do aconselhamento espiritual que recebi de um menino de dezesseis anos. falar de trocas engraçadas, das coisas espertinhas que dizem. falar do desespero, do barulho. mandei um aluno para fora de sala e pensei: isso é algo para ele ou para mim? para lidar com o meu próprio estresse? às vezes, invento um motivo para sair da sala, caminhar o corredor, respirar um instante de silêncio e aí voltar. conheci as mães, e alguns pais, de alguns dos meus alunos. foi bom e também foi horrível. 

tento ficar perto da escrita porque sempre estive perto da escrita. aceito que não será nada nunca como eu gostaria. não consigo escrever como aquilo que eu gosto de ler, os autores que eu amo, aquelas palavras que vivo repetindo perto do coração. recentemente, li o terrível livro da tati bernardi e pensei: pelo menos, em salvar o fogo existe um esforço de imaginação, um esforço de dizer, um esforço de sair de si. claro que essa ligação, aparentemente sem sentido, tem razão de ser. se um dia eu escrevesse algo que existisse em papel, como usaria meu esforço? um eterno diário, um eterno ensaio. digito isso de lábios cerrados. gosto de diários e ensaios eternos. gosto de narrativas da imaginação. 

tenho lido pouco e escrito menos ainda. tenho dormido muito e me sentido muito cansada. mas é engraçado – sempre que leio o pouco que leio, sempre que escrevo o pouco que escrevo, algo se mexe. diante da leitura: alegria e espanto. diante da escrita: alívio. as palavras, sempre as palavras. penso no nome escolhido aos catorze anos e sorrio. ridículo, e também outra coisa. 

a cã

quatro meses atrás, a essa hora, eu estava indo na veterinária pela primeira vez na noite.

mas não é isso que importa. o que importa. o que importa? dia desses, eu tive um momento tão óbvio na análise que só restou uma risada compartilhada entre mim e a analista. falei que antes de ir ao consultório, tinha tirado um cochilo em casa e sonhado com a cã. falei que não sabia o motivo. falei que no dia anterior, tinha sentido muita saudade dela. falei que naquela manhã, tinha lido a morte da baleia para os meus alunos. foi aí que fiz "ah!", e aí as risadas todas. quanta obviedade. a morte da baleia. o sonho. você, criaturinha. 

você fez a viagem até nossa casa em uma caixa de sapato. presente de um amigo do meu pai, da época da faculdade, da ninhada dos seus dois cachorros. fomos buscar você na casa dele. coisa minúscula. menor do que uma chinela tamanho 37. seu nome ia ser lilith, mas um final de semana antes eu estava no cinema com meus amigos e passou o trailer de um filme de terror sobre uma criança possuída por lilith. eu sempre fui muito medrosa e atenta aos presságios. melhor algo mais banal, comum, corriqueiro: lola. um nome muito 2010. era 2010. isso importa? você na caixinha de sapato, no meu colo. você na imensa caixa em que o rapaz do crematório te colocou, catorze anos depois.

parece loucura se eu digo que quando fecho os olhos, consigo sentir na palma da mão a textura do seu pelo? contando do sonho que tive, lacrimejando. sentir nos braços o seu peso. não quero nunca acordar. perguntas: eu brinquei o suficiente? será? será que dei atenção suficiente? será que as coceiras e as cócegas foram suficientes? para você. para mim, não foram. para mim, podiam durar ainda muito, muito, muito tempo.

às vezes eu penso que daqui a quase quinze anos, vai chegar o dia em que vou pensar: agora eu vivi sem você o tempo equivalente de viver com você. o que é um pensamento cômico, já que eu tinha vivido quinze anos antes da sua chegada. eu já vivi o tempo equivalente sem você. só não lembro como ele era. 

dos quinze aos trinta anos, eu vivi uma rotina irrecuperável. a cã. ela. animalzinha. ver um bichinho dormindo e pensar em como ama esse bichinho que está dormindo. olhar para a porta e ela estar lá. chegar em casa e ter sua recepção. ver um bichinho envelhecer e continuar com carinha de bebê. mesmo cego. mesmo ficando sem dentes. dedicar amor a um bichinho. um bichinho dedicar amor a você. eu sempre falo como fico feliz que os animais brincam, você e eu, animais que brincam. como eu não vou morrer de saudade? eu vivia tão preocupada com o dia da sua morte. eu chorava só de imaginar, muito menos do que o que choro agora. agora. agora mesmo, enquanto escrevo isso, e choro, choro, choro, pensando que é impossível explicar-entender a não ser que você também tenha um bichinho. não que eu não acredite na empatia das pessoas que nunca tiveram um. é que você tem que saber o que é a pura presença física de um animal sem palavras. como a casa existe muito menos para você do que para ele. como a casa existe ao redor dele. o que ele precisa para viver, o que ele não pode alcançar, o que ele tem que fazer. imagine a presença. imagine a sua casa, a sua rotina, a sua vida. a comunicação por uma via que não a da nossa linguagem, mas uma outra. imagine tudo isso, e todos os anos disso, e então o fim disso. pronto. acabou. essa vida que você sempre soube que seria curta, acabou. 

a casa sem a cã. lembro de voltar da clínica veterinária, depois do seu corpinho ter sido recolhido, entrar no apartamento e ver sua caminha no chão da sala. a casa, a sua casa. as suas coisas. as suas coisas sem você e a sua casa sem você. meu deus do céu, como é possível você não estar aqui? 

um dia, chegando de madrugada em casa, a cachorrinha da vizinha latiu e eu parei com a chave na porta e o coração acelerado porque ouvi direitinho o seu latido e por um segundo bêbado e sonolento, fez todo sentido imaginar que era você latindo. nos primeiros dias após a sua morte, meu corpo em alerta na hora do seu passeio, um cutucão no cérebro repetindo que eu não estava fazendo algo que devia fazer. eu estou reclamando muito? ela morreu com quase quinze anos. o que mais eu poderia querer? cinco anos, pelo menos, ou três, ou dois, ou um dia a mais, talvez? um dia, uma semana a mais? só mais um pouquinho? você, tão pequenininha. só uma vezinha mais. 

não tem nada aqui além de saudade. penso: amá-la foi o maior privilégio de todos. seu corpinho encostado ao meu. as numerosas lambidas. os arranhões e os latidos. criaturinha maluca, voluntariosa, amável. minha criaturinha nesse mundo. e eu, a sua. 

os meus guris

quando comecei esse blog, escrevia como forma de fugir da escrita da dissertação.

parece uma loucura que eu tenha defendido a dissertação. caramba. quantas vezes ela apareceu aqui nas postagens como algo impossível de acabar, de escrever, de fazer? e agora está feita, defendida e lida por uma banca generosíssima que recomendou que eu procurasse algum lugar para publicá-la. daqui a poucos dias, começam as minhas aulas do doutorado e a angústia de um novo texto a ser escrito. por agora, estou escrevendo no blog como forma de fugir de algo muito mais complicado do que uma dissertação ou uma tese: o planejamento de uma aula.

não preciso, felizmente, entregar um plano de aula completo, todinho por escrito, para a escola. acho que isso me geraria um pânico tremendo. é meu primeiro ano sendo professora, a primeira vez que estou com as turmas desde o princípio. então toda semana preciso descobrir como vou passar o conteúdo e que conteúdo quero passar. toda semana, todo dia, toda hora estou descobrindo ou tentando descobrir a professora que eu sou, ou que quero me tornar. todos os dias me pergunto: sou a vergonha da profissão? estou fazendo isso do jeito certo? é para ser assim? sinto vontade de pedir licença aos outros professores, com mais tempo, para assistir suas aulas. as aulas que estão frescas na minha memória são as aulas da universidade. queria me lembrar das aulas da escola, das aulas de português da escola. o que dizia o fábio coelho? o que dizia a fábia? a ceiça? o que me diziam meus professores, como eles preenchiam aquele tempo? falatório sem fim? atividades? outras informações?

meu maior problema como professora é que eu adoro conversar com os alunos. parece engraçado anunciar isso como um problema. o que eu devo a eles? qual o equilíbrio? quero ouvi-los, quero que eles aprendam. o que eles vão aprender? escrevo no quadro: cantigas de escárnio, cantigas de maldizer. volto-me aos meus alunos, em todas as salas, seis vezes repetindo a mesma pergunta: qual que é o nome de um tipo de música que se faz para falar mal de alguém, um outro cantor, normalmente? e em todas as salas, depois de uns instantes de pensamento, alguém brada: ah! uma diss! e eu sorrio, pegando os trovadores por uma mão e o rappers por outra. sim, sim, balançando a cabeça, uma diss.

o que eles vão aprender? encho o quadro de informações que logo estarão esquecidas, alguns garotos puxam suas cadeiras para perto da minha mesa e copiam enquanto conversam comigo. ao final, um deles diz que é muito melhor copiar um quadro imenso enquanto se conversa com a professora, e fico imensamente alegre. ah, i., é muito melhor ser professora enquanto se conversa com os alunos. qual que é o nosso equilíbrio? ele existe? penso nas coisas que eu queria que eles fizessem: escrevessem mais, escrevessem melhor. lessem mais. o que eu estou fazendo para isso? estou fazendo o suficiente? falar dos livros, mostrá-los, ler passagens em aula: isso basta? pedir para que eles escrevam, ouvir os resmungos de preguiça e insatisfação, insistir. isso basta? 

conheço meus alunos há um mês e seis dias e sinto que já os amo profundamente. como é possível? criaturas falantes e esquisitas, barulhos quase o tempo todo, resmungos, revirar de olhos. os alunos que eu jamais seria amiga caso fosse também aluna moram no meu coração. os alunos que eu obviamente seria amiga caso fosse aluna, também. até mesmo os mais difíceis. até aquele que de cara eu não gostei, o primeiro que eu aprendi o nome, com seu semblante de profundo tédio, nenhuma vontade de fazer nada que eu pedia, nem mesmo de fingir fazer. diante dele, todas as vezes eu pensando que não podia demonstrar, que ele não podia saber do meu desgosto. eu tenho trinta anos, ele tem quinze, eu sou responsável por como ajo sobre meus sentimentos, ele ainda está aprendendo essas coisas todas. depois de uma breve bronca, dada até com alguma tentativa de humor, na última aula, ele me olha com um sorriso enorme, malandro, sorriso de lobo e diz: você não gosta de mim, professora, mas eu gosto de você. como não amá-lo de imediato, amar sua perspicácia, sua leitura de mundo, seu sorriso ao enunciar essa frase que por qualquer outra boca poderia sair com imensa angústia? 

na sala de aula, muitas vezes, me sento no meio deles, ocupo uma carteira. d. coloca um chocolate sobre minha perna e sai. depois eu pergunto: ué, é pra mim? e ele confirma. meu primeiro chocolate. l. e m., em dias diferentes, elogiam minhas roupas, falam que eu sou estilosa. l.s., umas semanas atrás, me dizendo que quando crescesse, queria ser que nem eu. por quê? por eu ser uma adulta com personalidade. lembro de ter quinze anos e morrer de medo de, aos trinta, não amar mais o álvares de azevedo. de olhar para os adultos como pessoas entediantes. ah, o descompasso do tempo. p., g. e k. discutem jujutsu kaisen enquanto copiam a matéria. não consigo parar de sorrir durante a conversa. eles sentam nas carteiras bem na minha frente. "vocês são muito ignorantes," p. diz, erguendo a palma da mão, "vocês não leram o mangá". essa frase me faz sorrir o dia inteiro. m. fala que mataria todo mundo da sala, menos eu. nervosamente, digo: muito obrigada, m., mas por favor, não mate ninguém, nunca. f. puxa uma cadeira para se sentar ao meu lado e conversar comigo e d. sobre o pequeno trecho do documentário d'o povo brasileiro que vimos. eles falam coisas sobre o mundo e eu escuto, fascinada. sentada do lado dos alunos da sala que sou conselheira, a. me pede conselhos amorosos. e. e g. me perguntam, outra sala, se eles são minha turma preferida, ou uma das melhores, uma das que eu mais gosto. 

se r. sentiu que eu não gostava dele, todos os outros sentem que eu gosto deles? será que eles sabem? será que eles sabem que meu coração é mole, manteiga, pudim, sorvete, algo doce e macio, coração de fruta, melancia, docinha, docinha? eles sabem disso e sabem que podem usar os dentes em mim, arrancar pedaço que eu vou encontrar um significado, um motivo, uma justificativa? ou ainda, sabendo disso, o pedaço jamais será partido, mas sim preservado? um mês e uma semana de aula são suficientes pra eu já pensar e sentir tudo isso? mas que raio de profissão é essa? 

ser professor é muito esquisito. os momentos ruins. a voz cansada. disputar o espaço da fala. colocar as mãos no rosto e perguntar, exasperada, se eles não conseguem fazer silêncio por um instante só. no meio de tudo isso, no meio do ruído sem fim, no meio do agito e da preguiça, da indisposição e do cansaço, olhar para eles e pensar com tanta certeza e tanto espanto: meu deus, eu quero o bem dessas pessoas. eu quero o bem dessas pessoas de um jeito inédito e novo. não é como querer o bem de seus amigos, das pessoas que você ama. é parecido, mas é diferente. imagine-se olhando para a cara de um bando de gente de quinze anos. você já teve quinze anos há muito tempo. o que será que esses adultos sentiam por você? esse senso de responsabilidade? eu deveria falar mais de acentuação e de vírgulas? ou deveria dar mais espaço para ouvi-los? mais ainda? eu quero tanto que eles falem. eu quero tanto que eles se sintam seguros. eu quero tanto que eles se sintam confiantes. olho para os meus alunos e me pergunto: será que vocês sabem? alguns, talvez, sim. outros, não. a maioria não deve saber isso, não exatamente. talvez apenas pressintam de alguma maneira. talvez de nenhuma: quando eu era aluna, o que pensava dos sentimentos dos meus professores por nós? talvez nada.

li a flor e a náusea um monte de vezes nas aulas. sento-me na capital do país. passar a mão sobre a forma insegura. tenho vontade de dizer aos meus alunos desse ano, como tinha vontade de dizer aos alunos do final do ano passado: eu ainda estou aprendendo, também. eu estou aprendendo com vocês a ser professora. ainda estou tentando descobrir como ser a professora que eu quero ser, ou ainda, descobrir a professora que eu quero ser. olhos abertos, ouvidos abertos, peito aberto. não digo a eles porque eles não fazem ideia do cansaço que é tentar ensinar, então quero poupá-los: se eles me ensinam a ser e a não ser, que seja assim, no espontâneo. na saída de uma das aulas, viro para c. e pergunto se ele acha que vai dar certo, a apresentação da dissertação. claro que vai, ele diz, você é boa falando. abro um enorme sorriso e a defesa da dissertação diante de professores tão estimados por mim, cuja opinião vale tanto, parece tão, tão menor do que um menino de quinze anos, com toda a displicência e sinceridade, me dizendo que sou boa falando. 

são oito e quinze de um domingo e eu não planejei direito minhas aulas da semana. tenho apenas uma vaga noção de algo a falar e a fazer amanhã. e a cada dia a angústia de estar ou não fazendo a coisa certa, do jeito certo. e desejando, no meio dos erros todos, que são muitos, que algum dos acertos conte e que eu possa ser a professora que eu gostaria de ser. 

assum branco, alma-de-gato, avalovara, amor

ontem eu resolvi reler avalovara. 

ontem também, no meio da leitura de suas primeiras páginas, fui acometida pela lembrança da música assum branco: quando ouvi o teu cantar, me lembrei nem sei do que. me senti tão só, tão feliz, tão só. só e junto de você.

eu sinto vontade de digitar essas palavras de novo. realmente digitá-las, não só copiar e colar aqui. me senti tão só, tão feliz, tão só. só e junto de você. apertei outra vez todas essas letras. sinto que esses versos comunicam algo que é e não é secreto. que é e não é evidente. que pode e não pode ser dito de outra forma. tão-feliz-tão-só. só-e-junto-de-você.

avalovara é o meu livro de amor. eu amo muitos livros. eu amo os livros. é engraçado isso, amar os livros. parece bobo e tem que ser bobo. parece sério e tem que ser sério. é a grande bobagem da minha vida, e eu a levei a ferro e fogo. posso fazer uma rememoração dos livros na minha vida, vou evitar. se você não é novo aqui (aqui, o blog; aqui, a ordenação do meu pensamento), deve saber que as coisas me emocionam. fatidicamente, as coisas me emocionam. inevitavelmente. às vezes eu canso, às vezes não. quando falo de avalovara, não espero que outras pessoas amem esse livro. ele se sustenta sozinho, é óbvio. ele não precisa de mim, é bem o contrário. é que minha relação com ele me parece uma outra coisa. uma outra coisa inclusive em comparação a minha relação com outros livros. é como se esse livro existisse de uma maneira completamente diversa para mim. no geral, quando falo de grande sertão com pessoas que não leram, a expectativa é quase de: preciso que você sinta isso também. não é o caso com avalovara. algo será sentido, até mesmo tédio. mas não será também.

ontem, lendo, fui tomada por uma melancolia enorme. pensei no ano de 2019, seis anos atrás. tentei lembrar de como eu era com vinte e quatro anos. o que eu sentia? como me movia no mundo? sentia ainda muita falta de fortaleza. sentia muita falta dos amigos de fortaleza. minha amiga marina ainda morava em goiânia, a gente se via só de vez em quando. sentia falta de um amigo que tinha feito e perdido dois anos antes. sentia falta de mercúrio, que tinha morado um pouco em brasília e eu não tinha aproveitado a dádiva. em uma aula no último horário da noite, uma professora deslumbrante começou a falar desse livro que eu nunca tinha ouvido falar antes. ela falava com paixão profunda. eu pensei: eu quero sentir isso também. fiz um tweet de brincadeira: alguém quer me dar um livro chamado avalovara? minha amiga mary, que não pode ver uma dessas, prontamente o comprou pra mim. mas a leitura só viria no segundo semestre daquele ano, quando a professora montou um clube do livro de alunos interessados (após muita insistência minha e de um menino daquela aula que perguntou, na cara dura, se eu tinha twitter. eu nem consegui negar. matheus, eu te amo). 

minha primeira leitura de avalovara se estendeu por mais de um ano, porque o clube do livro virou um grupo de amigos e a gente conversava mais do que lia. matheus, karol, gabi, luciana: eu amo vocês. eu amo todos os nossos encontros, os livros em cima da mesa dividindo espaço com bolinhas de queijo, café, chopps, nossas mãos agitadas, nossas vozes sobrepostas em mil assuntos, mil vezes a pergunta "vamos tentar ler um pouquinho?", não ler um pouquinho. o prazer de sentir que estava fazendo amigos assim, ao vivo, em tempo real, semanalmente, aquelas palavras do osman costurando a gente juntos. veio a pandemia e líamos o livro por chamadas de vídeo. avalovara fez um feitiço de amor para mim. passar mais de um ano lendo um livro que me obcecava a cada palavra foi diferente. geralmente, eu engulo tudo de uma vez. consumo as coisas rápido demais. com ele não foi assim. e não só foi devagar. foi junto. 

em novembro de 2020, mesmo mês que terminei a leitura, me deparei pela primeira vez com o alma-de-gato da árvore da frente do meu quarto. que pode não ser o mesmo, e pode ser sempre o mesmo, e com sua imensa cauda bem que poderia ser um avalovara. é importante e fundamental que o avalovara seja um pássaro. 

a segunda leitura foi rápida. o começo de 2021. li cada frase copiando e colando de um pdf em um arquivo para que meu amigo cordeiro pudesse criar o avalobot no twitter. um arquivo imenso, o livro inteiro separadinho de maneira a caber no limite de caracteres. ainda no começo de 2021, com outro clube do livro. dessa vez, eu seria a guia da leitura. que engraçado. lembro com carinho desse clube, benji, água, cameio, kini. as conversas pelo discord no domingo à noite. no mesmo ano, meu ex-namorado me mandou uma mensagem anônima falando sobre meu vídeo de avalovara (na época, ele não era ex-namorado, claro. nem namorado ainda). penso nele lendo avalovara para chegar perto do meu coração. ele lia e me comentava coisas, passagens. primeiro por mensagem, depois ao vivo. lembro de ele ter guardado o final para ler comigo. ele me levou até o martinelli. lembro de lermos o final juntos, no aeroporto de congonhas, terminando o livro minutos antes do meu voo de volta pra brasília. passei três anos sem reler avalovara, mas nunca desvinculada dele. meu prazer era abri-lo pra reler as mesmas passagens uma vez e mais outra. tantos trechos lidos repetidamente. em tempos recentes, um homem parou de me beijar para dizer que estava começando avalovara e por ter visto tanto o símbolo da personagem a que chamamos de tantas possíveis formas tatuado no meu colo, a imaginava com a minha aparência. fiz a única coisa possível diante dessas palavras e, claro, voltei a beijá-lo. 

como sentir isso também, se quando eu abro o livro ele não é apenas o livro, mas esse monte de gente, um monte de amor, um monte de saudade? e também: não são muitos dos livros exatamente isso? ricardo piglia ou emilio renzi escrevendo em seu diário que se recordava dos livros importantes não pelo conteúdo, mas dele mesmo enquanto os lia. osman lins escreve: avalovara, o pássaro do meu contentamento. o que mais eu posso dizer se ele já colocou aí todas as palavras? o livro do meu contentamento. abro o livro, uma porção de vozes saltam. as de dentro dele, as de fora dele. tudo misturado. abro o livro e ele tem um monte de beijos, os dele e os meus. minhas lágrimas unidas a todas as lágrimas dele. nossos apaixonamentos juntos. nossas raivas coladas. eu vivi muito com esse livro do meu lado. me senti tão só, tão feliz, tão só. só e junto de você. como é possível que existam esses versos que traduzem tão bem uma relação possível com a leitura, e com o mundo? olhar as páginas do livro, olhar as árvores. tão só e junto de você. não tenho medo de concluir, no final, o contrário do que falei no início: talvez você sinta isso também, só não com esse livro. talvez você sinta isso também com esse livro.

eu sinto que sou muito aberta às experiências das outras pessoas. de leitura, sim, e de todo o resto. eu gosto de saber. eu tento entender. de vez em quando, eu entendo. então eu entendo que em alguns momentos o livro possa ser maçante, que ele possa causar angústia, que ele possa causar algum tipo de temor da incompreensão. e ao mesmo tempo, esse livro, os livros, são tão mais do que isso. não? algumas vezes? como é que a gente faz amigos? o que é que nos vincula tanto a outras pessoas? fazer amigos, se apaixonar, estar perto. um monte de palavras. eu sinto vontade que as pessoas leiam avalovara porque mais do que tudo, eu acho bonito. eu sinto vontade que os meus alunos leiam qualquer coisa porque queria que eles encontrassem essas formas doidas de beleza. obsessivas. essa coisa que coloca as palavras de outras pessoas diante da gente e refaz nosso pensamento. o desejo de que todo mundo possa sentir, também, como a música: tão só, tão feliz, tão só, só e junto de você. 

um exercício, ou: lições de anatomia

disse a você que poderia escrever parágrafos sobre te ver beijando outras pessoas. é mais do que isso, claro, sempre é: penso em você se mexendo em festas, dançando, beijos na boca inclusos. você com um sorriso brincalhão, contido, safado, bonito. você e suas decisões feitas com receio e com gosto: para onde ir, que filme ver, com quem encontrar, o que dizer. tudo entre o prazer e a dor. queria me desfazer do ânimo de ser narradora, parar de observar desse jeito, você não é um personagem e ainda assim acho irresistível e inevitável esse olhar, sorrir diante do seu sorriso, coração acelerado junto com o seu às sete e meia da noite, ouvir suas palavras com a vontade de registrá-las; querer viver todas as coisas, querer viver pra sempre. digo a você que reza de homem profano é mais forte. digo a você que você é o príncipe da luxúria, um vereador numa terra sem vereadores. digo a você: não seja cruel. dizem a você que você é o bataille do cerrado. digo a você, dizem a você: um monte de palavras de outras pessoas se acumulando ao seu redor, criando sentidos, fabricando percepções. queria desfazer tudo, a minha e as dos outros, deixar só as suas ou só as que valem a pena. chega de palavras, vamos aos gestos, e ainda assim, gosto tanto das suas palavras hesitantes e tão pensadas, gosto ainda mais das impensadas, os gestos condenáveis, todas as broncas que você leva por mau comportamento no parquinho. eu não sou narradora, mas se fosse, você não é personagem, mas se fosse – um destino selado e traçado da evidente predileção, o carinho narrativo, narradora e leitores se apaixonando juntos, página a página. sempre é tão bom por os olhos em você, melhor ainda notar como os outros também gostam, um mundo cheio de pessoas desconhecidas que estão sempre te cumprimentando. de onde vem tanta gente? ou da burocracia ou da esbórnia. sinto vontade de perguntar: posso ser sua amiga? como se já não fosse; posso chegar perto?, como se já não estivesse perto. uma fascinação estranha e interessante. dez parágrafos sobre o prazer de ver você beijar outras pessoas condensados em algumas frases: como suas mãos se mexem, seus olhos fechados, eu sempre gostei do desejo, você se torna eros – o desejo dos outros e o seu misturados, algo novo e brilhante. coloco minhas mãos no seu rosto e digo que te amo tanto. dou risadas enormes do seu lado, você é cheio de absurdos. brinco de quebra-cabeça com o que você me conta. imagino você adolescente, impossível adolescente, com as mãos trêmulas? suadas? com a ansiedade batendo no fundo da sua garganta? o papel na mão, o recado: ele gosta de garotos, o que você sentiu? alívio, tontura? anos depois, outro papel, outro recado, e agora? tormento, tesão? o que você pensa e o que você sente, do que você tem medo e do que você tem gosto: eu quero saber. você fecha os olhos e deixa que uma criança desenhe seu rosto com caneta vermelha, permanente, permanente também o seu sorriso. a criança olha o próprio trabalho e diz: você é igual a deus. a crítica literária que puxa você para um beijo na alta madrugada, mais uma história que só podia ser sua, sua, sua. vai deixando seus pedacinhos com os outros no caminho, tanto de você espalhado por aí no canto da boca e em tantos suspiros. tem espaço ainda? queria ter chegado antes, e também não queria. gosto da hora que é e como é. você – bonito e doido, tempestade no meio da tarde. fica aqui pertinho que eu gosto de te olhar.  

um beijo nos joelhos, ou:

onde eu coloco toda essa lamúria?

estou obcecada com minha nova profissão e faço disso um assunto com todas as pessoas. faço de tudo um assunto com todas as pessoas. anne carson escreveu: o que eu faço com os meus olhos? e eu repito: o que eu faço com os meus olhos? olho para as crianças, que são adolescentes, algumas das crianças têm até mesmo dezoito anos, imagine só, e penso nelas com todo o carinho do mundo. sou professora há tão pouco tempo que não deu tempo ainda de ser derrotista, derrotada ou desinteressada. vivo com o eterno receio de que meu espírito não seja tão inquebrantável assim. os deuses vão me punir por acreditar que eu posso acreditar até o fim. um aluno está maravilhado com eu ter lido senhor dos anéis e saber o que é um rpg de mesa. eu estou maravilhada com o maravilhamento dele, e triste. meu deus, como pode ser assim tão solitária a infância? acabei me deparando com um vídeo meu adolescente. eu com dezesseis anos. eu com a idade dos meus alunos. não adianta: pensei tanto pensar sobre minha adolescência, estava enganada. ou melhor. eu tenho uma porção de registros da minha escrita adolescente. mas não era suficiente. mais uma vez, a vida, sempre, maior do que a literatura. olhei para a adolescente que fui e fiquei sem reação. as palavras, o jeito. sou eu, claro, evidentemente, sou eu, eu sou essa pessoa, e ao mesmo tempo é estranho que eu tenha sido já assim.

fico tentando escrever como forma de tirar algo de dentro de mim. a lamúria, as lamúrias. 

ela me perguntou como aconteciam comigo tantas coisas dignas de nota. com todo mundo, não acontecem coisas dignas de nota? ou tudo é digno de nota? eu sou aquela imagem de uma página inteira grifada a marca-texto: tudo é importante. o que eu faço com esses olhos? olho para você pela última vez tão de perto e penso que queria muito adiar o fim, o fim, sempre o fim, inevitável fim. falo em voz alta, nervosa: o que é gostar de alguém, se não adiar o inevitável? fico serenamente triste, tristemente serena. posso uma vez mais que seja pressionar meu rosto contra o seu? não. lembro de olhos fechados, meus olhos fechados, o desejo nunca realizado de poder ficar mais um pouco, não ir embora, conseguir voltar a trás, desfazer, refazer. posso sentir sua respiração, seu coração, sua pele, seu cheiro, sua voz, suas mãos, seus dentes? não, não, não, não, não, não, não. tudo impossível, três-tantos-impossível. queria morder a língua e calar a boca, mas não queria, não. o que eu faço com essa voz? aprendi a ser solene e séria por essa via, escrevendo na lousa: o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. o narrador também não. converso com um senhor na rua carregando caixas de seriguelas, eu gosto muito de seriguelas, são a cara da casa dos meus avós em sobral, a casa que não existe mais. esse senhor olha para mim com algo que beira a timidez e diz: você é uma moça muito bonita. com vergonha e sem desejo. olho para ele surpresa e espantada, abro a boca e gaguejo um obrigada, começo a rir e e ele também, nos despedimos. você me diz que eu sou bonita e eu balanço a cabeça, negando, não posso ser. você segura meu rosto, firme, olhos firmes diante dos meus temerosos, voz firme repetindo: é, sim. é, sim. 

eu não tenho nenhuma criatividade, mas acho que sei olhar e contar. meu amigo caique me disse que isso bastava, já tem ideia demais no mundo.

o meu pai, um homem triste, tão triste. eu triste diante dele triste. ele olha para o passado e rememora, conta para mim coisas de outros tempos, conta para mim da vida anterior a mim. fui a contagem regressiva para o fim dos seus sonhos. eu olho tanto para trás, ele também. a eterna angústia de não conseguir fazer com que as coisas deixem de estar afiadas entre nós. engulo em seco a certeza de que poderíamos nos dar bem, nos dar tão bem. ele sempre chora no final de orgulho & preconceito, a cena do mr. bennet vendo a alegria da lizzie. o que deu errado? tento ter carinho, e tenho, abro a boca e saem escorpiões. a única pessoa no mundo com quem eu não consigo ser compreensiva na hora imediata, só antes ou depois. o que eu faço com os olhos? olho para os dele, pequenos como os meus. o que a gente fez de errado? poderia ser muito pior, poderia ser muito melhor. em algum lugar das ruínas, corto minhas mãos tentando mais uma vez descobrir o que há no fundo. em algum lugar das ruínas, ralo os joelhos pensando que posso colocar algo no canto certo. em algum lugar das ruínas, lembro que não existe canto certo, só o resto de tudo desfeito e o que faremos a partir daí. 

falo muito de mim mesma, tenho impulso de pedir desculpas, lembro que isso é apenas um blog, lembro que falar de mim mesma é tentar falar de alguma outra coisa também. o eu-lírico não deve ser confundido com o autor do texto. 

cansei desses olhos, posso trocá-los? agora é tarde, tarde demais. muito medo de mudar e dar muito errado, medo de não mudar e também dar tudo errado. lembro da menina adolescente que eu fui, vejo que não mudei nada e mudei tudo. o que faço com o olhar? olho para os alunos, penso que muitos deles são tão legais. pessoas legais. imagino-os no futuro, torço para que sejam felizes, que entrem na universidade, que se divirtam, que descubram que o mundo é grande. é possível sentir tanto carinho assim por essas pessoas tão terríveis e estressantes, irritantes e barulhentas? elas me cansam, no último horário eu não aguento mais falar, erguer a voz parece um crime contra o meu corpo. tenho que repetir de novo? ficou claro o que eu disse sobre o eu-lírico? vou dar um exemplo. alguns anos, vivi em itabira. silêncio, afirmações. quero sentar, estou cansada. quero ficar calada, cansei de falar. quero fechar um pouco os olhos e dizer: tudo bem, mexam nos seus celulares. uma menina bate na porta e me pede indicações de livros de romance. uma menina me chama e pergunta se eu acredito em deus. uma menina me chama e pergunta qual a minha sexualidade. um menino me chama e diz que eu sou uma das poucas professoras legais. morro de medo de ser uma professora legal: estou fazendo tudo errado, então? vocês não deviam me achar legal. eu queria ser menos sorridente e achar vocês menos engraçados. não, professora, por quê? porque rindo tanto de tudo, como vocês vão me levar a sério quando precisa? e aí vou explicar, anotar coisas no quadro, e silêncio. como pode todo dia, toda aula, todo minuto ser diferente? que profissão é essa? os alunos me perguntam se eu sou professora de português ou de história, e eu digo: uai. de literatura.

estar triste por esses dias me cansa muito. eu também estou feliz e animada. o que eu faço com essa lamúria? acho tudo muito engraçado, não sei qual a verdade. eu sou triste e solar. eu sou feliz e ensimesmada. alguém me disse há um tempo que tudo era verdade. outra vez, abro os braços diante da tal experiência humana. o bom, o ruim. dia desses, perguntei aos meus amigos: o que tem de errado comigo? e respondi aos meus amigos: eu sinto que nada, não parece ter nada de errado comigo. olho para a adolescente do vídeo, lembro que ela achava que tudo, absolutamente tudo estava errado com ela, nela. nos olhos dela. o que eu faço com esses olhos? olho ao meu redor e me sinto cansada, muito cansada, e continuo olhando. 

eu quero reabilitar a feiura



sim, eu continuo no tópico da beleza. ou da aparência. ou qualquer coisa assim.

queria que essa não fosse uma preocupação constante, mas sendo, vou lidar com ela desse jeito que lido com as coisas. alguns posts atrás, falei algo sobre sentir um certo prazer em ser feia e ser desejada. ser desejada sendo feia. é claro, no fundo, toda conversa sobre ser bonito/ser feio é muito permeável. tudo existe em percepções demais: a minha, a do outro, a da sociedade, que se mistura na dos indivíduos. é uma flutuação que é e não é óbvia.

um exercício que faço com constância e que com constância vejo ser feito na internet é o de olhar fotos de um passado (recente, normalmente) seu e pensar: ah, eu não era tão feia! ou que era bonita. ao contrário de agora. e repete. o agora vai ser passado recente, e no novo agora, pensarei a mesma coisa. a versão mais brutal disso, claro, é com fotos da adolescência. olho para a adolescente que fui e quase sinto falta de ar. um grande desejo de poder falar para ela o que eu sei agora. o descompasso temporal dura para sempre. as descobertas só chegam depois. 

quando digo que quero reabilitar a feiura é que eu acho importante se achar bonito. e eu acho importante não se achar nada. e eu acho importante se achar feio e viver. normalmente, eu me sinto assim: feia e muito viva. feia e com tesão. feia e desejada. feia e triste. feia e com raiva. feia e a pessoa mais simpática do mundo. 

eu gosto muito da beleza. fico espantada com as coisas bonitas. e acho que o mundo está cheio de coisas bonitas (e de coisas feias, é claro). amo muito os passarinhos, eles são lindos. penso em outros bichos que existem na terra e que causam nojo ou desgosto (claro, 

[o texto acima data do dia catorze de outubro de 2024. a partir daqui, estamos em fevereiro de 2025]

me parece ridículo gastar tanto neurônio com a aparência. com a minha aparência. me parecia ridículo quando eu tinha quinze anos, mas perdoável. aos trinta anos, é ridículo e imperdoável. especialmente agora que existe mesmo tanto horizonte pela frente. eu sou professora de literatura! caramba! desde o início do ano. só preciso do aval do meu orientador pra poder berrar que terminei a minha dissertação. vou começar o doutorado no final de março. os meus amigos, eu os amo absurdamente. não estou em escassez de beijo na boca. e isso pra falar apenas da minha vidinha de poucos problemas. imagine, se algo sério de fato estivesse acontecendo na minha vida. a aparência é algo tão pífio. pra que se importar tanto? 



assisti recentemente império dos sentidos e achei uma linda história de amor. o tweet do caio hoje me fez pensar: será que eu amaria tanto o amor se fosse incontestavelmente bonita? bonita de nascença? o que eu não quero com esse post: coitadismo. é terrível falar sobre não ser bonito e sentir que os outros estão imaginando que eu quero só ouvir que eu sou bonita. não é isso. eu até me acho bonita, e é quase um prazer culposo, como se a qualquer momento fossem abrir a porta e me flagrar me achando bonita e apontar o dedo e rir ou falar de como estou fazendo errado. isso deveria estar num parêntese, não ser bonita de nascença, ou não ser obviamente bonita. dizer isso me parece um ressentimento com quem tem essa beleza, e deve ser. eu devo ser muito ressentida. a coisa de ver alguém ter algo que você não tem, e nunca vai ter. quase como: eu posso ser bonita, mas não é dado. acho que sou uma pessoa charmosa, divertida, com quem os outros gostam de conversar, e amo muito isso e ser assim. mas absurdamente tudo cai por terra quando me deparo com uma pessoa [B]onita. posso até impressionar quando abro a boca e o coração, mas é isso, é até aí. preciso abrir a boca e o coração pra isso. 

de volta ao império dos sentidos e ser uma linda história de amor e o amor. me perguntei se amaria tanto o amor se etc. quase como se precisasse ser esquisita, ter sido esquisita, continuar um pouquinho esquisita pra poder assistir ao filme e me sentir enternecida, assistir ao filme e pensar com carinho naqueles personagens e na tranquilidade e na falta de susto de estar sob a mira da faca de alguém que se ama. quase como: eu preciso (precisei? preciso?) ser feia para achar isso bonito. preciso ser, ter sido, ser feia para olhar para o amor desse jeito. isso é verdade? isso é só uma tentativa de consolo? é preciso ser ou ter sido feia para olhar o mundo desse jeito, ou não? é preciso ser ou ter sido feia para pensar sobre sexo do jeito que eu penso, ou não? é preciso ser ou ter sido feia, ou às vezes ser feia, às vezes não ser nada, às vezes ser tudo, pra ter esses olhos e esses ouvidos, pra pensar desse jeito, pra querer as coisas desse jeito? ou não? sinto que estou cercada de pessoas bonitas e obviamente bonitas, e aí elas me dão seus relatos de adolescências esquisitas (o que nos une, afinal) e penso: qual é a obviedade da beleza, então? 

na adolescência, ser feia era um fato. não havia espaço para discussão. a única vez em que não fui feia na adolescência foi quando um menino que era conhecido e simpático com meu grupo, mas não do meu grupo e nem da minha sala, que estava na minha frente na fila da secretaria, colocou as mãos no meu rosto e disse "morgana, você é bonita", depois resolveu suas questões escolares e se despediu de mim como se nada tivesse acontecido. não ficamos amigos. ele só me deu esse presente e foi embora. penso muito nele e penso nele toda vez que quero muito elogiar alguém de quem não sou tão próxima, ou não sou próxima de forma alguma. uma janela. 

volto ao tweet de juru que abre essa postagem. não de um jeito tadinha, mas de um jeito brilhante. a moça feia debruçada na janela (vocês já sabem). eu gosto muito de que seja uma moça feia. mesmo. moça feia na janela achando que a banda toca pra ela. poderia ser uma tiração de sarro: moça feia, acha mesmo que a banda estaria tocando logo pra você? que é feia? mas não é isso. não, não. a beleza da banda é tanta que até mesmo a moça feia, que não deve receber prenda alguma, reconhece essa prenda. acho que a mente dela é brilhante.

minha amiga rafaela tem um olhar embelezador. parece algo engraçado de se dizer. ela me acha muito bonita, e eu acredito. quando ela me olha e me diz isso, quando ela me diz isso de longe. sinto que é real e que diante dela eu sou mesmo bonita. enquanto eu escrevo isso, ela acaba de me dizer por mensagem que eu deixo as pessoas mais bonitas do que elas realmente são. achei tão engraçado ter escrito as frases anteriores e receber essa frase vinda dela, que me deixa bonita. rafaela continua falando e diz que eu sou apaixonada pelo mundo, que eu vejo tudo mais bonito, e que as pessoas não são exceção. é engraçado que ela me aponte isso e não ache isso de si mesma, embora esteja sempre me dizendo coisas bonitas, e dizendo que eu mesma sou bonita. minha amiga rafaela é bonita e engraçada, bonita e doidinha, bonita e divertida, obviamente bonita e obviamente esquisita: então é por isso que ela consegue ter esse olhar?

comecei a escrever esse negócio em outubro, continuo escrevendo agora em fevereiro, sinto que estou andando pra trás nessa questão. sinto que tive épocas bem mais tranquilas. sinto que normalmente opero no nível da neutralidade. sinto que, sinto que. imagino com amargura que a aparência é um empecilho para algumas coisas: costumo pensar que se eu fosse [B]onita, isso jamais estaria acontecendo. se eu fosse bonita, não haveria dúvida. se eu fosse bonita, não haveria hesitação. se eu fosse bonita, isso e aquilo. se eu fosse bonita, eu nem precisaria abrir a boca.

acontece que eu gosto de abrir a boca. 

um exercício, ou: devoramos poetas

yes a cliché
and i do not apologize because as i say i was not to blame, i was unshielded 
in the face of existence
and existence depends on beauty


poeta, escuto a voz de lorca modulada pela de cohen modulada pela sua. penso que preciso prestar atenção, prestar toda atenção do mundo. i gave her something pretty, ele-ele-você diz, and i waited until she laughed. momentos depois de outra coisa, eu rio, você ri com a invenção de orfeu debaixo do braço. poeta, eu existo na sua risada. pelo resto da noite, fico impressionada pela confluência das três vozes, como três planetas alinhados, como um eclipse total do sol. tantas vezes na minha vida sou assolada pela dúvida diante dos meus olhos: eu posso ver tudo isso e sair impune? eles me respondem com a precisão que me falta: é claro que não. você nunca sai impune. sinto vontade de perguntar se você sentiu que era importante também, e desisto. perguntar é caçar uma verdade que não precisa muito para ser encontrada. poeta, eu não sirvo para musa. é preciso, novamente, praticar uma inversão. coloco você nessa posição, as palavras são minhas, oriento o olhar dos outros. se pudesse escolher uma só parte de sua anatomia para transformar em soneto, você já sabe, seriam as mãos. olho para elas com o prazer que olharia para um grande felino antes de encontrar o fim em seus dentes, para um raio partindo o céu ao meio, para as cores brilhantes de uma cobra coral, para um imenso galho de árvore prestes a despencar. na imaginação, sempre aceito morrer com imensa docilidade: atropelada porque distraída com a música no fone de ouvido; diante de um animal selvagem; debaixo do seu olhar. tudo me mata, e deliciosamente. coloco minha mão sobre seu braço apenas para ter certeza de que ainda não chegou a hora de ser abocanhada e não tenho certeza alguma. quero antecipar seus passos e seus gestos, quero adivinhar o jeito que suas mãos vão acompanhar sua fala. quando você diz algo, seu corpo inteiro se move junto. quando você canta, quando você dança. digo: você se mexe tão bonito, e você dispensa o elogio com uma piada. suas mãos vão de um lado para o outro, os ombros, as pernas, o mundo todo uma impossível pista de dança. quero entrar na dança, não consigo: palavras que morrem atrás dos dentes, passos que ficam congelados no tempo. você faz do meu corpo a imitação de um instrumento musical: cordas e teclas nos meus braços e ombros, o ritmo de todas as músicas que escutamos transformado em tato, e eu gosto. poeta, coloca seus dedos na minha boca, seu dente na minha ferida, sua língua misturada a minha. sinto desejo de consumir, abocanhar, devorar. você resolve minha vontade de me tornar monstro. conseguiria incendiar tudo apenas com a chama da minha ideia. sinto um prazer imenso quando você me ordena: lê. quando você diz: eu quero que você leia. tanto prazer com as palavras. tanto prazer com o caminho que você me revela tortuoso pelas suas palavras, que até a angústia se torna doméstica, ronronando no meu peito. tanto prazer com as suas palavras e prazer com as minhas quando você as escuta, distraidamente atento. olho para você e é como estar diante: do mar, duma cidade, duma pedra, duma refeição, dum pássaro, dum polvo, dum besouro, dum gato. duma música. é como estar diante de uma música. o amor, a pergunta: como posso engolir o meu amante?, e rio, poeta, porque sei que você jamais seria engolido por mim, apesar do meu desejo. sou eu que estou entre os seus dentes – e isso quase não tem importância alguma. peço que você beije os meus joelhos e imagino o gesto como uma espécie de bênção: assim você também pode me ensinar a partir. 



a moça feia debruçada na janela, achando que a banda tocava pra ela

eu gosto de olhar as coisas.

com lágrimas nos olhos, olho três dos meus amigos quase cinco da manhã dançando ao som de don't stop me now numa pista muito esvaziada. assim que a música se inicia, um deles me sussurra: vamos embora, chega. um estranho intervém: não, não, você vai dançar. como dizer não? ele vai dançar. fico sentada, meus pés doem terrivelmente após tantas horas em pé. dançar é bom. olho para os três e eles cantam e pulam e rodam, eles se mexem e eu olho braços e pernas e expressões faciais, e meus olhos se enchem de lágrimas porque. por quê? sinto muito amor. estou tão cansada, e rouca, e suada. por um instante, me parece que eu deveria estar lá, rodopiando junto, mãos dadas. mas não. sou egocêntrica? a moça feia debruçada na janela. a banda não está tocando para mim, mas eu acho que está. eles estão dançando porque estão dançando, isso não tem nada a ver comigo, mas tem, eu olho para eles e sinto que estão todos tão vivos, tão vivos e comigo, eles estão comigo, somos nós, eles e eu, juntos. eles dançam, eu olho. eles existem, eu olho. eles se mexem, rindo, divertidos, e eu olho, extasiada, apaixonada, encantada. meu cérebro fica repetindo: eu amo vocês, eu amo vocês, eu amo vocês. 

dentro de um carro, um casal de amigos me convida a ser a professora de direção. os dois têm carteira, é tudo recente, dirigir dá um medo danado. fico sentada no banco do passageiro, tranquila, verdadeiramente tranquila. não me assusta estar no carro com eles, embora ambos estejam tão nervosos. alguns errinhos são cometidos, mas a morrer um carro é bem mais tranquilo do que morrer: basta dar a partida outra vez. curvas meio rápidas demais, entradas meio devagar demais. digo: está tudo bem, é normal, você está começando. um monte de coisinhas prontas, mas as sinto de verdade. minha amiga vai para o volante, dizendo que só dirige em estacionamentos. tiro uma porção de fotos dela, ela está tão linda, usando oclinhos escuros, blusinha listrada. eles dirigem e eu coloco a mão do lado de fora da janela, sentindo a resistência do vento. é tão bom, o ar se torna um bloco, sólido, contra a velocidade, minha mão que cede aos seus movimentos. vamos para outro lugar, meu amigo diz: um pica-pau. desço do carro exasperada e lenta para fotografá-lo. pica-paus sempre parecem pássaros de brinquedo, de pelúcia. fico tirando fotos e os dois aguardam pacientemente dentro do carro. é tão bom poder se distrair em companhia, olhar as coisas em companhia. de volta ao carro, no caminho, esmiúço para os dois alguns dos meus sentimentos, e eles escutam e respondem sob a tensão do trânsito. me sinto muito amada. é possível isso? estou trapaceando em algo? eu os amo, eu sou amada. 

no caminho de volta para casa, minha amiga me diz que não sabe o que ainda oferece para a nossa amizade, depois de tantos anos, com tanta gente nova tendo pipocado em minha vida. a frase me soa compreensível e absurda. ela é ela. penso em todas as tardes e noites passadas na companhia uma da outra. assistindo filmes juntas no sofá da casa que ela morava, mãos dadas nos momentos de tensão. piqueniques em parques. uma obsessão alimentar depois da outra. ela mexe as mãos de maneira tão bonita. seus dedos são finos, ossinhos de pássaro. constantemente sou lembrada de uma tarde em um parque, eu ensandecida segurando meu celular como se fosse uma arma, mostrando para ela algo que me parecia, que era, um crime. ela me vê com a faca na mão e apresenta uma solução que a um só tempo me vinga e me salva. posso soltar a arma, posso me acalmar de novo. o que é um amiga? alguém que você escuta. alguém que escuta você. os mesmos assuntos, e os novos, repetidos, reiterados, apresentados, por anos a fio. uma amiga, um museu da sua história, uma exposição de quadros novos. ela e seus ossos de passarinho, leves como o ar, pronta para partir mais uma vez. penso na saudade que vai ficar comigo e na saudade que ela vai levar com ela. um sentimento como um daqueles cordões que dividimos ao meio, cada uma com uma parte. o que ela oferece? empresto meu olhos, que pensam sempre que a beleza do mundo está aí disponível para eles: tudo. 

olhar as coisas sempre foi um prazer. uma infância gasta de olhos na porosidade do asfalto, nas rachaduras dos troncos das árvores. adolescente, gastei os olhos nas bocas que jamais poderia beijar, nas mãos dos professores que um dia gostaria de imitar, nas lombadas dos livros nas livrarias de shopping. adulta, a visão ainda não cansou: olhe aqui, essa folha, esse pássaro, essa placa, essa pessoa. vivendo uma repetição de tudo, sempre. gostava de olhar, ainda gosto. tenho apreço pelos meus olhos: pequenos e feios e ainda assim é por eles que tanta beleza passa. quanta generosidade é preciso para que você dê o que te falta ao outro? meus queridos olhinhos: não importa como veem ou não veem vocês, importa o que vocês veem. o mundo não é feito para mim. tudo estava antes, tudo estará depois. mas enquanto eu estou aqui, distorço a verdade e torno tudo meu, tomo tudo: eu quero ver. quero ser boa de olhos. deixa eu olhar para eles, para essas pessoas que eu amo. deixa eu olhar para as coisas. quero me encantar diante de um pássaro, diante de um calango, diante de um folha que é tão enorme e tão verde. 

um dia vejo pedra e é pedra mesmo, e basta que seja. pedra, água, sol, chuva. só o que as coisas são, sem metáforas nem alegorias, e já é tanto. pensar no detalhe de tudo, na loucura que é poder colocar as mãos: nos braços de quem eu amo, numa laranja para ser cortada. tudo existe muito. 

diante da professora que eu amo, explico para ela uma situação e ela escuta, suas lindas mãozinhas pequenas sobre os lábios enquanto sussurra "gente...". ela é pequenininha, com mãos de dedinhos rechonchudos, curtinhos. outra vez, sentada no corredor do lado de fora de sua aula, vejo projetada na parede a sua sombra segurando um livro nas mãos. sorrio, tiro fotos da sombra. eu a amo de um jeito que até me assusta pelo tamanho e força, a vontade de estar perto, de saber como e o que ela pensa. uma admiração que ultrapassou os limites da primeira relação que estabelecemos, ainda que eu me sinta aluna de tudo, ela já me trata como outra professora. ela termina de me escutar, toma um gole de suco e fala: você tem o coração muito aberto. congelo meu sorriso. eu tenho? eu tenho. mas quem é que mede a abertura de um coração? como eu sei, como ela sabe que esse coração é aberto assim? ela prossegue: eu não sou assim, abro apenas frestinhas. rio e quero dizer que escancarei a porta, ou bati tanto com tanta força que ela teve que me aceitar na sua vida, mas não quero interrompê-la. ela diz: eu não daria conta de ser assim. eu dou conta? eu só sou assim. é mérito ou demérito ou nada, neutro, ser desse jeito? um coração tão aberto é problema e é solução na mesma medida. ela é minha professora, então só me resta dizer: me ensina a ser diferente. com um sorriso meio envergonhado, meio falseado. ela me olha e diz, categórica: Não.

ternura, parte dois

durante três dias, estive apaixonada por um homem que iria embora. 

ir embora, talvez, seja o de menos. ladainha: de uma forma ou de outra, todos vamos embora. a aposta do amor é uma brincadeira com a morte – a morte do próprio amor, a morte do amante. durante três dias, estive apaixonada por um homem que iria embora. durante três dias, venci a aposta. durante três dias, envolto pelo meu amor, esse homem jamais poderia partir. 

do outro lado da mesa de um café, o homem que amei por três dias me olhava com seus olhos nublados. nos conhecíamos há dez anos e estávamos nos conhecendo naquele exato momento. minha palavras eram derramadas entre nós com algum nervosismo, nervosismo atípico: não éramos novidade um para o outro, e éramos, e tudo era novo e só agora eu entendia a força daqueles imensos olhos cheios de tristeza. o homem que amei por três dias me sorriu e afagou-me o braço, entrelaçando suas palavras às minhas. senti que amaria o homem que iria embora: três dias, três vezes para sempre. 

o homem, com seus três dias marcados a ferro no semblante, me deitou em sua cama e me despiu com gentileza impossível. em silêncio diante de sua calma, transformei-me em outra: quieta e suave. recebi seus presentes com gravidade atípica: beijou-me os cabelos e as têmporas, um sussurro, um farfalhar. beijou-me os olhos e as bochechas. a boca sobre a minha era o murmúrio dos pássaros pulando entre as folhas das árvores. era preciso memorizar sua mão, a textura de sua pele, o formato de seus dentes, a maciez dos seus lábios. era preciso guardar bem guardada a imagem de seu rosto acima do meu, olhos cerrados, uma expressão séria, séria. colei minha boca ao seu ombro, era preciso saber seu suor. o homem por quem estive apaixonada deixou uma série de palavras largadas no escuro, elas rolaram de sua língua e descansaram no leito do meu corpo. o homem por quem estive apaixonada beijou-me o colo e as axilas, os braços e os peitos, as palmas das mãos e o interior das coxas. seus dedos afagavam tornozelos e pulsos, afundavam na cintura e no quadril. dentro de mim, eu também estava dentro dele. sua delicadeza e sua doçura dançavam com sua tristeza. e comigo. 

com o homem que iria embora, o mundo se desfazia na falta de promessas. eu ansiava por uma mentira, uma mancha, um pouco menos de clareza. a opacidade ofereceria um conforto que depois, só depois, poderia me arrebentar. não: estar com ele era estar com o relógio. pus as mãos sobre seus olhos e desejei um milagre mesquinho – quando as retirasse, minha imagem iluminaria suas retinas da mesma forma que sua partida iluminava nossos passos, e ele decidiria ficar. o homem por quem estive apaixonada aguardou com paciência enquanto eu negociava com deus sua permanência. imóvel, parecia prestes a sorrir. quando o libertei outra vez, nada. epifania alguma. talvez a lama fosse parte crucial para o milagre da visão e me faltaria sempre a disposição de sujá-lo. 

o homem por quem estive apaixonada. o homem por quem me apaixonei. o homem que amei. o homem dos três dias. o homem que iria embora. o homem e sua mão na minha panturrilha. o homem e sua risada embriagada. o homem e seu silêncio. o homem e meu silêncio. coloquei-me diante dele com o coração em chamas. queria oferecer não o incêndio, mas o fogo de héstia. eu quero, eu quis. durante três dias, estive apaixonada por um homem irredutível em seu intento de partir. durante três dias. durante três dias. retirei um livro de minha prateleira, coloquei-o em suas mãos. uma lembrança de que eu havia existido, poemas marcados pela ponta do meu lápis, leve com você isso que não sou eu, mas que carrega um pouco do que eu sou. um mimo pelo avesso – é impossível tornar-se presente para quem irá embora. aceitando-o, era eu a presenteada: um suspiro aliviado de que haveria com ele algo que outrora fora meu.

após três dias, o homem por quem estive apaixonada foi embora. na minha casa, tremi e suei trinta e nove graus de febre madrugada adentro. não nos falamos mais. 

(para a parte um, aqui)

o reino dos sonhos

gosto muito que exista a expressão reino dos sonhos. que seja uma expressão consolidada. o reino. esse local que quem manda não é mais a realidade. isso é tudo muito bonito. vamos aos sonhos. 

um sonho de outra pessoa: minha amiga chora a perda de um grande amor, do seu grande amor, enquanto limpa o pus da boca de outra menina. imagine o pus, as lágrimas, o duplo choro: o da ferida na alma, o da ferida no corpo. essa outra menina é um desconhecida, ou conhecidos de sonhos, que são outro gênero de colegas que fazemos ao longo da vida. o amor é o amor do real, que escapa para o onírico; lembro que quando eu namorava, vivia sonhando com meu namorado, dormíamos lado a lado e eu ainda o encontrava nos sonhos. um sonho é uma porta, um reino, a boca inflamada de alguém que você não conhece, mas que você vai limpar mesmo assim, porque é o que é preciso e o que faz sentido. 

um sonho erótico: estou boiando em um lago. gosto muito de corpos de água, grandes corpos de água. rios, lagos, mares, açudes. meus sonhos têm muita água. estou boiando em um lago, tem sol, mas não muito, uma agitação e vem um crocodilo até mim, abocanha meu pulso, quase com ternura. acordo com a sensação. penso: foi um sonho erótico. sinto dificuldade de explicar para as pessoas, e não quero transformar isso em uma piada sobre scalies. não é pelo crocodilo em si, que não é humanizado. é a mordida do perigo tão singelamente dada em um momento de distração. repito: estou na água, tranquila. um crocodilo, tranquilo. meu pulso disposto para se tornar alimento. sou mordida, e não dói. 

um sonho cômico: carregando um filhote de bem-te-vi nas minhas mãos, desço dezenas de lances de escada, apavorada, não posso machucar o filhote e existem dois linces que me seguem nos degraus. eu só um pouco adiantada. isso tudo é treinamento dos correios. outro: sonho que estou numa consulta online com um psiquiatra que não abre sua câmera, insisto para que ele abra a câmera; quando ele enfim cede e se revela para mim, ele é um hamster.

gosto da lógica dos sonhos. as coisas são. ninguém precisa me dizer que o que eu estou fazendo faz parte do treinamento dos correios, eu apenas sei que é isso. eu apenas sei, em um sonho, quando estou com um amigo, quando estou com um amante, quando estou em perigo. as sensações todas redondinhas no peito. os ambientes mudam e tudo faz sentido. um sonho é feito de cortes. eu estou na minha casa, que não é a minha casa, e a minha casa é simultaneamente a escola, e tudo isso faz perfeito sentido. narrar um sonho é fazer uma porção de escolhas, canalizar a atenção. o mesmo que narrar um acontecimento do dia acordado. é possível dar conta de tudo? não.

sonhos com animais: estou sentada na areia, olhando o mar bravo, ao meu redor, centenas de leões estão adormecidos. estou sentada na areia, olhando o mar tranquilo, e de suas ondas saem muitos e enormes lagartos furta-cor, um deles se deita no meu colo enquanto eu tento ler o elegia 1938. estou dirigindo meu carro e no banco do passageiro, bêbado, está o hozier, com um cisne no colo. estou em uma casa tomada pela vegetação e por lobos, e os lobos me conhecem e estão preocupados comigo. estou olhando uma coruja através de grades, ela arranca as grades e me dá um recado, que eu esqueci. estou andando pela w3, descalça e de camisola, cheia de terra vermelha nos pés, e um passarinho se prende em meu cabelo. estou em uma brasília inundada, com água até a cintura, vejo uma cobra dar o bote em uma paca, surge uma onça e come a cobra, um urubu me dá um rasante, e chove, chove, chove. 

eu sempre sonhei demais. nunca achei que era demais, na realidade. todos os dias na escola chegava com sonhos novos para os meus amigos. todos os dias acordo com sonhos novos se dissipando por trás dos meus olhos. alguns valem algumas palavras, outros, não. sonho com beijar a boca de gente que nunca pensei em beijar a boca, e agora quero beijá-las. sonho com beijar a  boca de gente que desejo beijar a boca, e desejo ainda mais. sonho com estar perto de gente estranha que não é estranha, são meus amigos. sonho com meus amigos. sonho com a minha cã. depois de morta, ela ainda é minha? sonho com a cã e acordo com a agudeza da saudade. sonho com músicas. sonho com uma mesa de pessoas cantando clube da esquina. sonho com o paul em um bar, querendo puxar um coro de hey jude. sonho com sons de carrilhões. sonho com uma música que nunca ouvi.

sonho com fumar maconha (eu não fumo maconha!) e conversar com uma onça. sonho que estou tentando paquerar um rapaz que só quer dar um trago na sua maconha. quando li grande sertão, sonhei com o diabo na rua, no meio de um redemoinho. sonhei que estava lendo os miseráveis muitos meses depois de terminar a leitura. sonhei que estava lendo detetives selvagens no dia em que comecei a lê-lo e decidi que não iria continuar a leitura, porque ia me obcecar. sonhei que lia um conto inédito do machado. sonhei que lia um romance perdido do drummond. sonhei com uma edição de moby dick com as páginas pintadas de forma a simular o movimento do mar. sonhei que estava numa festa com o antonio candido, e ele cantava um funk. sonhei com o peter capaldi jovem, ele era meu namorado e morávamos em sobral. sonho, sonhei.

não existe final para esse texto. ele acaba abruptamente, como acordar. 

uma texto de ficção ou paixão simples, parte dois

 "queria a todo custo me lembrar do corpo dele, dos fios de cabelo aos dedos dos pés. conseguia ver, com precisão, os olhos verdes, a mecha balançando sobre a testa, a curva dos ombros. sentia os dentes, a parte interna de sua boca, a forma de suas coxas, a textura da pele. pensava que era muito estreito o limiar entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória e a loucura."

entre a memória e a loucura. queimo a sola dos sapatos evitando voltar para casa, na rua por dezoito horas, o tempo inteiro sua imagem na janela. ou: estou preso há anos na mesma praia, olhando para o mar, chorando todas as tardes desejando um retorno impossível. ou: a memória dos seus olhos se erguendo do livro que lemos juntos, sua boca cansada de hesitar sobre a minha e agora aqui, atada para sempre a você no redemoinho da nossa luxúria. beijar a boca de tão perfeito amante. respira perto de mim um pouquinho, quero lembrar do que pode ser muito bonito. você me dá adeus e eu sorrio e suspiro para o céu: por favor, deixa eu ficar com esse. 

sentir tanto assim é uma dádiva, ela me diz. ela também me diz como é bonito ver meu rosto aceso em olhos brilhantes e um sorriso cheio de dentes. sorrindo com todos os dentes, aperto-os, tentando manter algo dentro da boca: mais do que a língua que deseja falar e lamber, mais do que o coração que deseja viajar, é uma coisa, uma outra coisa. memória ou loucura? lembro e travo os dentes, tensamente feliz. imagino, alucino, preciso conter algo que aponto como um monstrinho, criaturinha cheia de espinhos e ainda assim tão amável que você só pensa em apertá-la. que importa uma ferida ou duas, quatro cinco ou cem cortes diante desse abraço impossível de descrever? como vou contar e você sentir em meu estado? mas você vai sentir, você já sabe, ou pode imaginar saber.

aos treze anos de idade, rabiscando uma carta para ser entregue, sob um falso véu de anonimato, para um rapaz de outra sala. derramando os sentimentos. ela me diz: a gente gosta de romance, a gente gosta de coisas bonitas acontecendo, a gente gosta de histórias mirabolantes. uma história mirabolante em cima da outra. ela sai andando por salvador, doida e desembestada, com o celular na mão procurando aquela com quem viria a se casar, mas com quem não tinha ainda trocado nenhuma palavra. algumas vezes, a loucura não só será perdoada: toda loucura será compensada. faça alguma coisa, faça qualquer coisa. o que é de chorar às vezes também é de sorrir. 

eu gosto de você..., sussurro? digo? sorrio, envergonhada, a mão no seu cabelo. sinto vontade de repetir: eu gosto de você. até mesmo: eu gosto de você!, ou então: eu gosto de você? com uma interrogação que não é realmente dúvida, é mais surpresa diante da constatação. posso gostar? não, claro que não, o tempo é curto e é errado; e ainda assim, gosto, um sorriso cheio de dentes, gosto de você e gosto do quanto poderia gostar de você. gosto do que é, gosto do potencial e até mesmo gosto do nada que resta, um nada colorido e cheio de vultos. quero gastar o meu gosto, amolar essa faca até que de tão certeira baste a ideia para executar o corte. o utinam a nostro secedere corpore possem. deixa eu olhar para o seu rosto só uma vez mais. que olhinhos mais bonitos que você tem. 

entre a memória e loucura. durante meses estive acompanhada por uma assombração. o cheiro estava em tudo o que eu tocava, e ela morava no canto do meu olho, inescapavelmente. as assombrações vão passar? a constatação é a de sempre, e é terrível: o fantasma sou eu. a terrível ferida não tarda a cicatrizar. é mentira, claro. a ferida está aí, aberta, orgulhosamente levada no peito. paro para respirar. meus olhos ardem, quentes, e o corpo todo quente junto, coloco as mãos docemente atrás dos meus joelhos e sinto quentes, quentes, quentes. estou com febre e começo a rir, tudo pode sempre ser tão divertido entre a memória e a loucura. a pele arde como o coração que está incendiado e eu constato que meu problema no mundo não é ser exatamente assim, é que ser exatamente assim é amável e desconfortável na mesma medida. minhas ferramentas ainda são as infantis? o que eu deveria já ter aprendido que ainda não aprendi? 

a infância é o período da solidão total: dentro dela, não podemos nos comunicar; os adultos não compreendem. fora dela, somos adultos e modalizamos a infância a partir da nossa recente incompreensão. eu gosto de você, repito, dessa vez para mim mesma. quando criança, parava diante do espelho com a boca aberta, os olhos abertos, as mãos abertas, tentando entender como era que aquilo que eu via não era algo solto no mundo, aquilo era o que eu era. criança, as barreiras ainda não existem, são construídas ou forçadas pelo tempo. eu gosto de você e parece que dá para cair e se machucar do jeito que só é possível de se machucar quando se é criança. 

na saída de uma aula, dentro da sala, roubo o beijo de um pobre coitado e saio correndo. repetindo e repetindo e repetindo os acontecimentos. as coisas costumeiramente não dão certo. refaço essa rota: as coisas dão certo do jeito que elas têm que dar, inclusive do jeito errado. o que é possível se querer de outra pessoa? eu penso em você. não importa se você pensa em mim. deito sozinha, entre a memória e a loucura, fechando os olhos no escuro e alucinando o seu peso sobre mim. se você não pensa agora, pensou depois do beijo roubado na sala de aula. se você não pensa agora, pensou enquanto sua boca tornava meu corpo alimento. o que se pode querer mais? o que se pode querer, claro. sempre mais. 

com muita seriedade, digo para amigos: as pessoas usam os verbos dar e comer de forma muito determinada e errada. como dois polos de uma ação conjunta. não, é tudo igual. dar é comer. eu dou a você meu corpo, você me consome; eu também consumo o corpo que você me oferta. corrompendo weil, que diz que o estado de santificação ocorre quando comer é olhar. não, não. você precisa entender o êxtase. comer é dar. diante do seu desejo, eu existo, você existe diante do meu desejo. coloco as mãos no seu rosto e é sólido e real, ainda que feito de brisa. com a boca cheia de você, penso: isso vai acabar comigo. isso vai acabar logo. olho para você, entre a memória e loucura, diante da alucinação, diante do nada, o que mais eu posso querer? o que mais eu devo querer?, isso só vai acabar aqui. no mundo de cá, esse mundo de fantasia, cheio de dentes e de doçura, a lição já foi dada e selada: o que é bonito há de ser para sempre uma alegria. 

assistir sex & the city está mexendo comigo

meu amigo pedro me enviou um poema do frank o'hara como consolo por eu falar tanto das mesmas coisas o tempo todo. eu posso ser perdoada por isso? fico pensando que devo soar, ou pior: ser, egocêntrica que nem a carrie, escrevendo sua coluna a partir de sua experiência e da experiência de suas amigas. eu devo ter feito umas cinco vezes um tweet dizendo que queria ser a annie ernaux cearense. eu sou viciada em mim mesma? na minha própria experiência? nos meus acontecimentos? em pensar e pensar e pensar sobre essas coisas; as coisas que estão ocorrendo comigo. eu sinto tanta falta da pura ficção. de ser adolescente e me entregar à escrita de fanfics, exercício de imaginação, brincar de casinha de bonecas com as bonecas que outras pessoas tinham confeccionado. sinto saudade da ficção. mas ao mesmo tempo, eu gosto, gosto mesmo, de falar assim. num espaço entre. limiares. isso aqui não é ficção, eu estou escrevendo no meu blog, mas existe algo de imaginativo, não sei dizer o que. essa voz, esse jeito. sou eu, mas num recorte tão específico. ou sou simplesmente eu.

hoje é dia primeiro de janeiro de dois mil e vinte e cinco. isso deve ser algo a se notar. no dia trinta de novembro de dois mil e vinte e quatro, minha cãzinha morreu. é estranho o longo lamento sobre isso? ela ia fazer quinze anos no dia dezesseis de dezembro. o que eu estava esperando mais? que um animal que vive em média esse tempo mesmo me acompanhasse por mais quinze anos? eu não estava esperando que ela morresse. eu não estava esperando que ela morresse assim: depois de uma rápida sedação para tirar os pontos de uma cirurgia muito mais complexa que havia sido um sucesso um mês antes. assim: na clínica veterinária, às três e meia da manhã, longe de casa. um dia, dentro de casa, eu iria acordar e ela teria morrido. ou ela estaria caminhando para fazer xixi, ou ir comer, ou só andando pelos corredores, teria um súbito mal, despencaria. ou então iria tomar um banho de sol e ficar lá, serenamente, até nos darmos conta que o único calor vinha da luz no seu pelo. ela morreu sozinha lá, ao lado de gente estranha, com um ar-condicionado gelado, odiando cada segundo longe de casa. como eu sinto falta dela.

eu fiz trinta anos no dia doze de novembro de dois mil e vinte e quatro. fico pensando que terei de viver até, pelo menos, os quarenta e cinco para ter plena noção do que são viver quinze anos sem ela. é muito tempo. 

passei a virada de ano com amigos queridos daqui. acho que foi uma das mais divertidas que já tive em brasília. eu gosto tanto dos meus amigos. eu amo os meus amigos, claro, mas eu gosto imensamente deles. constantemente sou pega de surpresa pela minha própria sorte: é normal conhecer tanta gente boa assim no mundo? chega a ser engraçado, falo de amigos para outros amigos e eles exclamam: meu deus, você tem amigos demais. é engraçado porque é absurdo, porque eu passei a infância solitariamente alugando todos os livros da biblioteca da escola porque não tinha com quem conversar; porque assim que eu mudei para brasília foram anos e anos para que eu conseguisse fazer uma amizade aqui e daqui que parecesse fazer total sentido comigo. 

desde muito pequena eu soube que gostaria de escrever. tudo começou com a fatídica redação escrita aos seis anos de idade que minha professora quis enviar para tentar publicá-la no diário do nordeste. essa alegria se espalhou pelo tempo, pelo resto da vida inteira, como uma coisa, a coisa, o que eu queria fazer. eu tinha diários, e eu mentia nos diários, porque queria que os acontecimentos fossem mais parecidos com os dos livros que eu lia, livros cheios de paqueras e gatinhos e "fala sério". quando eu cresci (ou seja, quando fui dos dez para os dezesseis anos), não interessava mais mentir em diários, mas interessava escrevê-los como coisas interessantes, como algo que outra pessoa pudesse se divertir lendo. vou culpar a professora por ter me colocado para escrever com a ideia de que haveria alguém lendo. mesmo as coisas que só me interessam. que são as minhas coisas. que não tem nem o poder encantatório da ficção. 

bom. a redação era um exercício de ficção. então talvez a culpa tenha sido minha, eu mesma me desvirtuei. 

escrever em blogs desde os catorze anos também foi algo. nos blogs, eu podia escrever de mim. nas fanfics, eu podia escrever das outras coisas. eu devia voltar para as fanfics, que começaram aos onze anos. ou deveria voltar às outras coisas. enquanto não volto a elas, fico com o blog, e falar de mim. um exercício de estudo do que me cerca, do que acontece. um exercício de estudo de mim mesma. que objeto mais trágico e traiçoeiro. e, pior, bobo. 

sinto que na adolescência fui tão violenta. as brigas com os amigos. discussões enormes. ficava chateada com as coisas, chorava e arranhava meus braços. tinha impulsos de violência física: eu e meu querido amigo átila brigando na escola, lembro de bater nele, não lembro o motivo, e eu o amava tanto. olho para isso e penso: como? mas o desejo de violência existe, eu acho que quase como uma saudade. há um tempinho, escrevi aqui sobre o desejo de ser monstruosa, de poder me tornar um monstro. deve ser a falta da crueldade que eu me permitia ali, na adolescência. a crueldade comigo mesma, a crueldade com os outros. e ainda assim, leio o que eu escrevia na época, lembro de acontecimentos e penso: eu era tão doce. todas essas coisas conviviam. 

a crueldade só dorme? por vezes, sinto o desejo de ser cruel, mas não sei como, ou talvez saiba sim, saiba muito bem como e não consiga. meu amigo bernardo dizendo que eu podia apertar o pescoço dele, e eu sem conseguir. uma trava de segurança. quero ser violenta, tenho medo de ser violenta e não parar. eu acho que as coisas funcionam em todas as direções. eu já disse isso? devo ter dito, é sempre uma repetição: então se eu tenho muita força para ser amável e gentil, eu devo ter a força no outro sentido também. muita, muita força para ser cruel, e um medo absurdo de sê-lo.

eu sinto muito amor. fico pensando, querendo justificar, que tudo isso começou em novembro de 2020, quando vi um alma-de-gato pela primeira vez, quando pensei nos pássaros pela primeira vez com atenção. antes disso, vivia dizendo na internet que queria ser uma árvore. porque elas são bonitas, porque elas são interessantes, porque elas são vivas de um jeito absolutamente diferente. mas ver aquele pássaro me fez ver os pássaros, e ver os pássaros me fez ver os calangos, e ver os calangos me fez ver as pedras, e ver as pedras me fez ver a terra, e o solo, e os fungos, e de novo: as árvores. os pássaros. mas isso já não estava cifrado em mim? quando criança, amava assistir documentários do reino animal, o meu sonho de trabalho era esse: ser documentarista do reino animal. eu descia do meu prédio carregando uma prancheta e anotando as coisas que via. meu amigo gabriel citou bento santiago em uma de nossas conversas, me disse que estava atando as duas pontas da vida. o bentinho não consegue restaurar na velhice a adolescência. eu estou restaurando a infância? aprendendo de novo aquilo que eu já sabia, e já sabia que era bom, e tinha esquecido. e agora eu lembrei. é bom. é bom.

às vezes, penso: tanta ternura vai me matar. claro, não vai. mas é quase isso. dá uma sensação parecida. o último homem que beijei estava muito triste, justificadamente, com questões da vida dele. lindos olhos, e embaçados de tristeza. senti tudo muito sério, os beijos, as mãos, tão quieto, tão sério, não queria nem respirar alto. só conseguia pensar: queria gravar isso, esse olhar de tristeza tão pura e tão digna, tão longe de qualquer coitadismo, apenas lá, como um fato real, puro. tristeza, nem feia nem bonita, apenas ela, e ainda assim, ele era tão doce e tão gentil. talvez por isso tenha me enternecido tanto, a tristeza no olhar convivendo com a delicadeza dos gestos. a simone weil escreveu que as pessoas tentam transmitir aquilo que sentem, alguém muito magoado machuca um animal ou uma criança porque são indefesos. a violência da adolescência não era isso? e me deparar com a dor que não quer ser transmitida, não assim, não como dor, e que é passada adiante como um beijo no joelho. 

acontece de quando estou triste, minha amiga rafaela olha para mim e diz: você está tão tristinha!, e indica os meus olhos, ainda que eu esteja sorrindo e fazendo graça. sempre que ela diz isso, sinto imenso carinho por ela. pelo olhar atento dela. penso que é isso que eu quero, que é o que eu mais quero, que é o que importa: olhar para as coisas atentamente. acho que me comove que meus amigos sejam assim. pessoas que olham para as coisas. cada um do seu jeito, e cada um fará uma coisa distinta com a mesma informação. mas todos prestam atenção. escrevi isso e soltei um suspiro alto, e comecei a rir da minha cara molhada de lágrimas. eu gosto tanto dessas pessoas. sentada ao lado da minha amiga marina, dez anos de estrada brasiliense juntas, ela vai se mudar para o exterior esse ano, olhando-a fumar e pensando: caramba, como já foram dez anos? como é que essa companhia eterna, de horas sentadas em cafés, vai para o outro lado desse continente? e ainda assim, tão feliz porque isso fará bem para ela. amar as pessoas, e amá-las perto e longe. amar até a despedida delas.

agora que eu tenho trinta anos, penso: quando eu tinha vinte anos, escrevi que meu coração era um museu. sempre voltado para trás. uma nostalgia que nunca fez sentido. me sinto longe da nostalgia. ou vivo a nostalgia do agora. parece que descobri, nos últimos anos, que tem tanta coisa bonita pra acontecer ainda. tanta coisa bonita que aconteceu. há muito tempo atrás, em dezembro de dois mil e onze, eu estava sentada na praia de noite com minha amiga mercúrio. ela era da internet e tinha ido me visitar em fortaleza. hoje eu nem a chamo de amiga da internet: ela está junto com os meus amigos de adolescência, infância tardia. tantos passinhos dado juntas e de longe. tanta coisa bonita que aconteceu. e tanta coisa triste também. e vai ser assim, sempre, essas ondas da vida: o ruim e o bom, misturado, junto, a angústia do riobaldo que esse mundo seja tão misturado, que não dê para colocar o bem e o mal de lados opostos. você está vivendo, e é bonito, e dói. abrir o coração e mirar e ver. 

enquanto tudo passa rápido na estrada

parecia que esse texto já estava na sua cabeça. o dia inteiro fiquei repetindo as palavras que queria dizer. desejando que meus olhos pudess...